O exercício de nós mesmos
Um dos aspectos fulcrais da teoria do dissenso e consequentemente da antropologia existencial de Alexander Dugin é o gesto valorativo de preferência por nós mesmos. É nisto que se baseia o verdadeiro nacionalismo, a compreensão de que possuímos um eixo existencial próprio, cultural, que fundamenta nossa existência e deve nortear nossas decisões e estratégicas políticas. Isto quer dizer, de modo bastante simples, que nos diversos âmbitos da nossa vida, devemos ser autenticamente ligados à nossa tradição. Isso diz respeito a níveis espirituais e materiais.
Ao mesmo tempo, falar de tradição nunca é simples porque ser tradicional representa uma certa tensão com o conservadorismo. Como diz Buela, falando especificamente sobre a natureza da identidade argentina e o chamado movimento crioulo, não se é gaúcho no sentido estrito de imitar ou existir do mesmo modo que a figura histórica e arquetípica do gaucho, mas evocar, em outro tempo, um modo de ser que, pré-consciente, é o mito que nos forma. Por consequência disto, deve se ter um certo cuidado com aderir ao estereótipo, à mimese simplista. Retomando Buela, o terceiro passo do dissenso é metodologicamente o fortalecimento das tradições, mas as vivas, não as mortas. Tradições no sentido antropológico do costume são maleáveis, ao contrário da Tradição em sentido profundo, como conexão ontológica.
Por outro lado, a modernidade exige um outro cuidado:
Inobstante a correta apreensão de que o costume não representa a coisa em si, mas um acesso linguístico, uma ferramenta hermenêutica para a Tradição, em uma era liberal, pós-moderna e pós-humana, onde as fronteiras são borradas e o universalismo indiferenciado é deglutido consciente e inconscientemente, o acesso à tradição por esses recursos é importante. A redução eidética à tradição como percepção existencial do mundo só pode ser feita com a linguagem, o construto no imaginário de cada Logos. Mas isso não é simples…
Do mesmo modo que um corpo muito tempo parado atrofiará sua musculatura e limitará movimentos e potência imediata, o intelecto imerso nas redes rizomáticas perde contato com os eixos culturais orgânicos ao qual está ligado. Por isso, às vezes, é tão difícil para muitos gostar do que é brasileiro, regional, etc. Por isso o globalismo imerge em todas as teias sociais e produz sua engenharia nefasta. A mente simplesmente foi adaptada, longa e consistentemente, à mundialização. A opção pela tradição é qualitativa, mas não está dada.
O retorno à tradição e a si é como o retorno ao movimento, o conhecer-te a ti mesmo. No início é doloroso e o resultado é inapreensível, a sensação de desconexão e desejo de retorno ao casulo dos hábitos até então alimentados é constante, mas é parte do processo. Não há outro caminho. É preciso, parafraseando Dugin e substituindo o eixo existencial:
… encontrar o centro de gravidade no próprio Brasil. Estamos sempre procurando pontos de referência fora de nós mesmos, às vezes no Ocidente, às vezes em menor grau no Oriente. Somos atraídos, inspirados, hipnotizados por algo externo, algo exótico. Sempre vamos a algum lugar em busca de algo que não temos em nós mesmos.
Temos que nos livrar deste vetor. Temos que encontrar o centro de atração, a inspiração em nós mesmos. Devemos entender que a cultura brasileira, a civilização brasileira, a identidade brasileira, a missão brasileira são a fonte de uma transformação fundamental e profunda, de luz, felicidade e alegria. Ou seja, devemos nos redescobrir a nós mesmos. Para isso, devemos nos purificar, nos transformar, nos ressuscitar. Este Brasil ressuscitada, não sob a influência de influências externas, mas dentro de si mesma, deve encontrar a fonte de seu próprio ser. A busca da verdadeira existência dentro do próprio Brasil, dentro do povo, dentro do coração brasileiro: esta é a tarefa principal.
É preciso escutar nossa música, ler nossos escritores, ouvir nossos grandes líderes, aprender sobre nosso passado, nossas vitórias e derrotas, as dúvidas e as convicções. É preciso uma reconexão com nossa origem, nossa formação, nosso espírito. É preciso transformar isso num exercício do espírito. Comecem com coisas pequenas, o que sentem que talvez atraia de modo mais simples, mais direto, e aos poucos observem o tipo de transformação e reconhecimento que emerge; e partindo daí, radicalizem-se. Lutem contra a sujeição, contra a preguiça, contra o conforto. O que é o Brasil e ser brasileiro não é uma resposta pronta, ainda está aberta, disputada. Nossa Primavera ainda não aconteceu.
Enfatizo, não se trata de viver uma mimese do que já foi feito, um recanto do passado acumulado em figuras históricas e a poeira dos museus. É antes um mecanismo de reconexão, o contato com o passado e os antepassados, como auxílio para a compreensão de questões mais profundas, sobre quem somos para podermos nos tornar.
Mas o que fazer com o que já consumimos do mundo? Isolar? Excluir? Ridicularizar?
Não. Já fazemos parte deste mundo moderno, amplo, global. A questão é COMO vamos vivê-lo, melhor, enfrentá-lo. Só há uma maneira espiritualmente autêntica de fazê-lo, milhares de inautênticas. A tensão entre a impossibilidade de uma afirmação isolada em si — pois o contato com o mundo está dado e precisa ser corretamente abordado, as alianças e batalhas corretamente firmadas e fronteiras estabelecidas — e a não contaminação é muito alta. É o risco existencial que corremos, que precisamos correr. Não há outro caminho. A aposta é, como sempre frisamos, total.