Em defesa do que somos: o elogio da Identidade

06.01.2023
O objetivo último do novo espírito do capitalismo, sua escatologia, por assim dizer, é a dissolução final de tudo que o ser humano compartilha de modo orgânico, para que seja substituído pela relação total do mercado. Tudo é regulado pela troca de mercadorias e tudo se torna uma mercadoria, até o sujeito. Nossas identidades espirituais e culturais, portanto, residem como último bastião contra a perdição pós-moderna da mercantilização total.

O pressuposto antropológico do novo espírito do capitalismo é facilmente identificável: o homem só se comporta racionalmente quando está livre de preconceitos e superstições e está, portanto, nas condições ideais para poder perseguir seu próprio interesse privado como homo oeconomicus. A partir disso, segue-se silogisticamente a demanda — sempre reafirmada pela ordem do discurso — de abolir tudo na esfera dos costumes, leis, tradições e outras esferas do espírito (religião, arte, filosofia), que obstaculiza tal racionalidade, elevada à única fonte possível de significado. É, portanto, de vital importância, para o cosmo-mercantilismo dominante, fazer tabula rasa de qualquer figuração de limites, seja ela tradicional ou racional, moral ou religiosa, jurídica ou ética. Em todas as esferas, a individualização competitiva da sociedade deve prevalecer, sem restrições, e ser redirecionada para a esfera “insociavelmente sociável” do nexo monetário: a filosofia liberal ignora a fidelidade mútua como uma motivação, resolvendo tudo na relação mercantil.

Como Michéa tem enfatizado: “a lógica liberal leva à destruição de qualquer comunidade humana”, que não aquela construída com base no intercâmbio mercantil. O contrato privado torna-se a verdade última de qualquer relacionamento humano, rebaixado ao nível do nexo entre comprador e vendedor. Em todo o horizonte, o perfil antropológico do homem robinsoniano — o indivíduo egoísta e calculista, cínico e agente, focado exclusivamente na obtenção de seu próprio lucro privado (negócios são negócios) — deve prevalecer inquestionavelmente. Tal indivíduo deve metabolizar o imperativo ultra-mercantilista da flexibilidade, concebendo sua própria vida como uma série nômade de mudanças e rupturas de toda estabilidade nos relacionamentos, projetos e compromissos. Portanto, ele deve ser despojado (e estar convencido de que isto é progresso) de todos os laços materiais e imateriais, e tornar-se um átomo globetrotter disponível para a mobilização total conectada aos processos de valorização de valor.

Do seu ponto de vista auroral, o capitalismo deve favorecer o encontro dos homens no mercado e, ao mesmo tempo, desencorajar qualquer outra forma de relação comunitária; e isto, de acordo com uma trajetória que vai de Adam Smith ao capitalismo “terapêutico” do Covid-19, cujo princípio fundamental — “distanciamento social” — marca a apoteose da neutralização de qualquer instância comunitária diferente da “insociavelmente sociável” e intrinsecamente efêmera, do intercâmbio mercantil.

É evidente que tal antropologia é incompatível não apenas com a figura anterior do proletariado da fábrica urbana, antagônica e ligada à monotonia alienante da estabilidade fordista. É igualmente incompatível com o velho mundo burguês “à la Hegel”, com o Estado e a esfera da ética comunitária estável, ou “à la Balzac”, com seus personagens cheios de preconceitos nacionalistas e valores religiosos, tradições patriarcais e estabilidade existencial. Como tentei esclarecer em outro lugar, refletindo-se no mundo mercantilizado sem resíduos, o capital torna-se especulativo; sendo, sem exceção, o espéculo no qual o turbo-capital se contempla, não vendo mais, em sua própria superfície refletiva, qualquer outro elemento perturbador, como religiões e ética; nem mesmo as duas classes, burguesa e proletária.

O capital especulativo (ou turbo-capitalismo) pode agora se contemplar de forma ubíqua, em pura forma, como uma mercadoria em livre circulação, no triunfo da omni-mercadização [conversão de tudo em mercado e bens] do ser, das coisas e dos animais, da natureza e do ser humano. Isto também explica a fusão das duas classes antagônicas precedentes em uma única multidão de plebe consumista, desprovidos de identidade e consciência, que propus para qualificar como “precariado” (em meu Historia y conciencia del precariado). Por esta razão é também, e não secundariamente, que o capital, na época da “glebalização” e da “identidade infeliz”, para realizar plenamente seu conceito, deve aniquilar não só o velho mundo proletário, mas também a ordem burguesa precedente. Ela deve, de fato, reconfigurar-se de forma pós-burguesa e pós-proletária, polarizando toda a humanidade em dois grupos qualitativamente relacionados e pós-identitários (consumidores sem Estado integralmente comercializados), diferenciados quantitativamente pelo valor de troca que possuem e pela posição objetiva ocupada no plano imanente da produção (aristocracia financeira por um lado e plebe precária por outro). A luta contra a identidade não pode deixar de ocupar um lugar central no programa de reorganização do mundo da vida (Lebenswelt).

Para tornar-se “absoluto”, ou seja, perfeitamente “completo” (absolutus), o niilismo da forma de mercadoria deve ser “liberado de” (solutus ab) todos os limites materiais e imateriais. No plano material, a dinâmica dialética da auto-realização do capital coincide com sua saturação do planeta (globalização), com sua neutralização dos estados soberanos nacionais (dessoberanização) e com a redefinição de cada elo na forma de um contrato privado entre vendedores e compradores (mercantilização do mundo da vida).

Na esfera do imaterial, a auto-realização do capital — sua passagem da dialética para o especulativo — ocorre através da colonização, livre de resíduos, da consciência e do imaginário. Como o Ich denke kantiano, a forma da mercadoria deve acompanhar todas as representações de homens globalmente alienados. As identidades, ligadas à cultura ou à natureza, ao indivíduo ou aos povos, tornam-se assim o equivalente dos Estados-nação soberanos no nível da consciência; ou seja, na ordem desordenada pós-1989, elas permanecem como os últimos bastiões, como os espaços críticos extremos, com fronteiras bem definidas, capazes de resistir ao ritmo alienante da omni-mercadização.

A redução material das fronteiras e a dissolução ideal das identidades aparecem assim como dois aspectos diferentes de uma mesma lógica de auto-desenvolvimento absoluto do capital, que, para se tornar ilimitado, deve necessariamente aniquilar cada limite, saturar cada espaço material e imaterial e dissolver qualquer realidade que o contradiga. A dessoberanização da consciência prossegue ao mesmo tempo que sua desidentificação, com o esvaziamento de todo conteúdo que é funcional à reocupação integral da consciência e das mentes pelo nihil da forma de mercadoria. A globalização dos mercados se impõe na medida em que destrói a soberania nacional dos Estados e a soberania cultural das identidades nacionais-populares e de classe, dificultando que todas as suas determinações sobrevivam ao que tem sido definido como identidade cultural na era da globalização.

Por um lado, ao redefinir a política como uma arte neo-canibalista de proteger os mercados e os mais fortes, a nova ordem mundial refuncionaliza os próprios Estados em uma chave liberal, dessoberanilizada e chamada a “governar pelo mercado” (e por sua classe de referência), sem qualquer possibilidade residual de “governar o mercado” em um sentido democrático e socialista. Por outro lado, dissolve as identidades dos povos e dos indivíduos; produz massas amorfas de sujeitos da pós-identidade e intercambiáveis, esvaziados de todo conteúdo e prontos a assumir cadavericamente qualquer que seja a ordem de produção que se queira impor-lhes. A coexistência destas duas dimensões no processo de globalização do material e do imaterial emerge com um perfil claro, se considerarmos entidades hiperglobalistas e pós-nacionais, tais como — entre muitas outras — a União Européia e a ONU. Mesmo que de maneira diferente, elas ainda provocam uma governança tecnocrática, desprovida de referências a identidades culturais e espirituais, que, ao mesmo tempo, é capaz de se colocar além das decisões dos parlamentos e das δῆμοι nacionais.

Deste ponto de vista, a União Européia (UE) tem favorecido — mais do que prevenido — a irrupção da globalização do mercado nos espaços do Velho Continente, ainda repleto de direitos sociais e limitações políticas, nacionais e constitucionais ao livre mercado. O velho capitalismo europeu, fortemente controlado pelo Estado e limitado pelas conquistas históricas das classes trabalhadoras, teve que ser redefinido de acordo com a nova figura do absolutismo do turbo-capital, sobre o modelo de competitividade absoluta americana. E esta era a essência da UE como eixo da revolução liberal pós-1989 no Velho Continente. Conseqüentemente, como mostra meu estudo Il nichilismo dell’Unione Europea, a UE, com sua autocracia tecno-burocrática, posicionou-se não mais como uma resposta à sociedade globalizada da matriz atlântica, mas como um passo que acelerou a transição em direção a esta última. Ela favoreceu a mudança dos centros de decisão dos parlamentos nacionais para órgãos pós-nacionais muito privados, tais como o Banco Central Europeu.

Que a UE, isto é, o novo império alemão nominalmente governado a partir de Bruxelas, é um exemplo muito concreto de liberalismo cosmopolita e que a globalização dos mercados é reconhecida tanto pela “revolta das elites liberais”, que graças à governança tecnocrática da UE conseguiram desencadear seu contra-ataque contra as classes trabalhadoras (por meio de “reformas” desemancipatórias), quanto pela pós-homologação identitária de culturas plurais. Estas últimas, que representam a essência da Europa dos povos, são cada vez mais claramente aniquiladas por meio da integração capitalista europeia, administrada pelos tecnocratas cinzentos de Bruxelas. Eles eliminam a Europa dos templos gregos e as catedrais cristãs, a fim de instalar o novo espaço neutro e assimbólico dos bancos e dos polos de capital líquido financeiro [que examinei a fundo]. As raízes culturais e espirituais da Europa são canceladas em favor do desenraizamento e da homologação própria do paradigma global-capitalista.

Fonte: The Postil Magazine

Tradução: Augusto Fleck