O Estado de Israel e o Terrorismo no Oriente Médio
A ideia de terrorismo no Oriente Médio está associada, imediatamente, ao Islã. Mas os salafistas e wahhabis são os únicos que praticam terrorismo no Oriente Médio? Mais do que isso, os primeiros terroristas médio-orientais eram muçulmanos mesmo? Aqui fazemos um breve apanhado sobre organizações terroristas judaicas do início do século XX como Haganah, Irgun e Lehi, bem como algumas mais recentes como Reino de Israel, Gush Emunim e outras.
Os tristes eventos recentes na Palestina Ocupada, iniciados em pleno Ramadã, faz com que nos deparemos com ondas de islamofobia propagados por pessoas e organizações que se beneficiam com a difusão da ignorância.
O que fundamentalmente se coloca em questão é a narrativa de um enfrentamento entre um Estado de Israel, legítimo, contra um Hamas que não passaria de um grupo terrorista. De um modo geral, é isso que encontramos na mídia de massa, nas redes sociais e mesmo em conversas informais.
Não temos a menor pretensão, aqui, de fazer apologia ou elogio do Hamas, organização que deve ser estudada e entendida dentro de seu contexto histórico e geográfico, mas de problematizar essa narrativa hegemônica de embate entre “Estado de Direito e Terrorismo” e mostrar pelo menos alguns dos seus furos.
De início, já poderíamos dizer que os problemas começam quando descobrimos que a palavra “terrorismo” não possui objetividade. Ela é sempre utilizada para designar as ações de um adversário político, sempre que este adversário consiste em um ator geopolítico não estatal. Não raro, porém, se designa como “terrorista” uma instituição ou órgão estatal perfeitamente legítimo e legal, como recentemente ocorreu com a Guarda Revolucionária do Irã, que não é uma milícia, grupo paramilitar ou bando armado, mas um dos ramos das Forças Armadas Iranianas.
Naturalmente, esse é um assunto complexo por causa da ausência de definições sólidas sobre o que é “terrorismo” e quem é ou não é “terrorista”. É possível encontrar todo tipo de acusação lançada contra todo tipo de grupo, de várias ideologias, várias religiões, até contra governos.
Mas, usualmente, quando se fala em terrorismo na mídia de massa hoje (especialmente após o desaparecimento ou pacificação de grupos como IRA, ETA, RAF e outros da Europa), se está falando de algo um pouco mais circunscrito geograficamente. Geralmente se fala em algo especificamente vinculado à história das últimas décadas do Oriente Médio.
Se essa é a circunscrição geográfica e histórica do fenômeno do “terrorismo”, as coisas ficam mais fáceis, porém. Porque o terrorismo no Oriente Médio não nasceu com a Al-Qaeda ou o ISIS.
A realidade é que quem deu início ao fenômeno do “terrorismo”, como ele é conhecido atualmente no Oriente Médio, foram as camadas mais extremistas do movimento sionista (mais especificamente, adeptos do chamado “sionismo revisionista” de Vladimir Jabotinsky).
Provavelmente, o primeiro grupo terrorista sionista atuante no Oriente Médio foi Bar-Giora fundada em 1907, quando a Palestina ainda pertencia ao Império Otomano. Bar-Giora havia sido o nome de um salteador, assassino e criminoso comum que se tornou um dos líderes da revolta dos hebreus contra os romanos no século I d.C.
A Bar-Giora sionista do século XX foi fundada por Israel Shochat e Yitzhak Ben-Zvi (que se tornaria o 2º Presidente de Israel), após sua participação no 8º Congresso Mundial Sionista, depois que eles retornaram para a Palestina. Bar-Giora era um grupo paramilitar cujo objetivo era construir um exército secreto para organizar uma insurreição armada para impor um Estado judaico na região. O lema desse grupo era: “No sangue e no fogo a Judéia se erguerá”.
A Ben-Giora durou apenas até 1909, porém, sendo expandida e convertida na Hashomer, uma organização paramilitar que operava como uma milícia, cobrando pela proteção de assentamentos judaicos. Segundo os relatos da época, porém, a Hashomer era extremamente violenta e tendente a atirar primeiro, perguntar depois.
A Hashomer se transformou, em 1920, na famosa Haganah, a principal organização sionista armada da Palestina, até que ela se tornou a base das Forças de Defesa Israelenses após a criação do Estado de Israel. Em geral, a propaganda jornalística dos anos 20, 30 e 40 sempre fez questão de distinguir a Haganah de outras organizações, consideradas “violentas” e “terroristas”, enquanto a Haganah se limitaria à defesa.
Mas essa narrativa de que a Haganah seria meramente defensiva é um mito construído pela própria mídia sionista internacional. Ao longo de toda a sua existência, e especialmente a partir do final dos anos 30, a Haganah esteve envolvida em ataques terroristas contra instalações britânicas no Levante, especialmente através da Palmach, a organização de elite da Haganah, composta por veteranos de guerra.
A Palmach teve entre seus principais comandantes Yitzhak Sadeh e Moshe Dayan, posteriormente generais das Forças de Defesa Israelenses, além de Yigal Allon e Yitzhak Rabin, posteriormente Primeiros-Ministros de Israel.
A sua especialidade eram as ações de sabotagem contra instalações petrolíferas, pontes e ferrovias. Apenas em 1945 eles estiveram envolvidos em mais de 150 ataques terroristas. Em 1946, eles chegaram a atacar uma delegacia em Shefa-Amr, além de explodir 10 das 11 pontes que ligavam a Palestina a países vizinhos. Em 1947 eles explodiram um café em Fajja, além de diversas casas em al-Khisas, perto da fronteira libanesa, assassinando dezenas de civis. No final do mesmo ano 170 terroristas da Palmach atacaram a aldeia de Balad al-Sheikh, destruindo dezenas de casas e assassinando pelo menos 70 civis. Na mesma época, a Palmach deu um início a uma práxis de demolir casas palestinas para impedir a sua ocupação por tropas britânicas ou insurgentes árabes. Durante a operação Nachshon, por exemplo, mais de 10 aldeias palestinas foram demolidas. A Palmach também sabidamente executou prisioneiros árabes durante a Operação Yiftach.
Mas mesmo a “defensiva” Haganah também possui litros de sangue inocente nas mãos. É necessário recordar o ataque ao Hotel Semiramis em 1948, localizado em Jerusalém, de propriedade de uma família cristã, e que resultou na morte de 26 pessoas, uma delas sendo criança, para não falar no vice-cônsul da Espanha.
Mas mais violentos que a Haganah ou mesmo a Palmach, eram o Irgun e o Lehi.
O Irgun foi fundado em 1931 como uma dissidência da Haganah por Vladimir Jabotinsky, um dos principais líderes políticos sionistas. O que fundamentalmente distinguia o Irgun é que eles não defendiam a política oficial da Haganah de “não retaliação”, e defendiam uma política de retaliação ativa contra alvos britânicos e árabes ou qualquer outro que pudesse ser um obstáculo para a construção de um Estado judaico na Palestina.
Entre os líderes mais importantes do Irgun estiveram Ya’akov Meridor e Menachem Begin. Os dois, após a fundação de Israel, fundaram o partido político Herut, que em 1973 se transformou no Likud de Benjamin Netanyahu. Foi pelo Likud que Menachem Begin, líder terrorista, se tornou Primeiro-Ministro de Israel.
É necessário recordar que os palestinos foram desarmados, em sua maioria, pelas autoridades britânicas em 1939, enquanto os sionistas não o foram. E isso se deu depois do início da campanha de ataques por parte do Irgun em 1938. Nesse período inicial, somente o Irgun assassinou 250 civis em diversos ataques.
A partir de 1944, quando começa a insurgência judaica para expulsar os britânicos, a campanha terrorista se intensificou. Em 1945, por exemplo, o Irgun explodiu 5 locomotivas em uma estação de trem. Mas os ataques mais famosos do Irgun foram o ataque ao Hotel King David, que causou a morte de 91 pessoas, e o ataque à Embaixada Britânica em Roma, que apesar de ter destruído o prédio só deixou feridos.
Se no período anterior os principais alvos eram britânicos, não só no Oriente Médio mas até na Europa, a partir de 1947, início da guerra civil, os principais alvos voltaram a ser palestinos. Um ataque explosivo matou 20 pessoas no Portão de Damasco em 1947. No mesmo ano, o Irgun explodiu um cinema em Jaffa matando 10 pessoas. E em 1948, nos últimos meses da guerra, terroristas do Irgun (auxiliados por membros do Lehi) assassinaram pelo menos duas centenas de civis palestinos após a tomada da aldeia de Deir Yassin.
Após a fundação do Estado de Israel, o Irgun foi absorvido pelas Forças de Defesa Israelenses, enquanto seus comandantes fundaram, como já mencionado, o partido que daria origem ao Likud.
O Lehi era menor que o Irgun, mas mais especificamente assassino. Enquanto o Irgun focava em explosivos, o Lehi focava em assassinatos de personagens importantes ou inimigos.
O Lehi surgiu em 1940, fundado por Avraham Stern, membro do Supremo Comando do Irgun, que acreditava que Israel deveria ser fundada através da luta armada contra os britânicos, e que recusaram a “trégua” defendida pela Haganah e pelo Irgun com os britânicos durante a Segunda Guerra Mundial.
Mais ideologicamente radical, e influenciado pelo nazismo, as publicações do Lehi defendiam que os judeus eram uma raça superior, e que os árabes eram uma nação de escravos. O Lehi defendia abertamente a expulsão de todos os árabes da Palestina e da Transjordânia. Entre os líderes do Lehi esteve Yitzhak Shamir, que também se tornaria Primeiro-Ministro de Israel.
Entre as mais importantes ações do Lehi esteve o assassinato do Ministro Britânico Lord Moyne, no Cairo, o atentado contra Ernst Bevin, Ministro de Relações Exteriores da Grã-Bretanha e o assassinado do Conde Folke Bernadotte, diplomata sueco da ONU que conseguiu salvar 30 mil prisioneiros de campos de concentração alemães durante a Segunda Guerra Mundial.
Em 1948, o Lehi também realizou diversos ataques a trens, como o ataque à linha Cairo-Haifa em fevereiro, que matou 28 soldados britânicos, e um ataque em março que matou 40 civis.
Tal como aconteceu com o Irgun, o Lehi também foi absorvido pelas Forças de Defesa Israelenses, e vários de seus membros se tornaram políticos respeitados de Israel. Mas membros do Lehi fundaram nos anos 50 o grupo Reino de Israel, um grupo terrorista internacional responsável por ataques contra supostos antissemitas. Reino de Israel foi fundado por Yaakov Heruti, ex-membro do Lehi que se tornaria fundador do partido de extrema-direita Tsomet.
É interessante comentar que, como muitos outros membros de organizações terroristas sionistas que eventualmente se tornaram políticos israelenses, Heruti defende uma Israel que vá “do Nilo ao Eufrates”, expulsando todos os árabes localizados nesse espaço.
Essa organização, porém, durou pouco e não teve muito sucesso. Eles tentaram explodir a Embaixada Soviética em Tel Aviv, ferindo levemente a esposa do embaixador. Realizaram também três ataques à Embaixada Tchecoslovaca, e enviaram bombas por correio para tentar assassinar Konrad Adenauer, Chanceler da Alemanha Ocidental.
Nos anos 70 e 80 Israel viu também grupos como o Gush Emunim, que realizou ataques na Cisjordânia, além de ter planejado explodir as mesquitas do complexo de Al-Aqsa; os Sicarii, um grupo que atacava políticos e personalidades israelenses vistas como pró-árabes, além do Terror Contra Terror, que promoveu ataques a ônibus, além de ataques com granadas contra locais sagrados cristãos e muçulmanos.
Como uma nota, comentamos que Terror Contra Terror era composto por membros do partido Kach, fundado pelo Rabino Kahane, um partido eventualmente banido em Israel. Kahane também fundou a chamada Liga de Defesa Judaica, que desde os anos 70 acumula ataques terroristas e assassinatos nos EUA e França, mas que é pouquíssimo conhecida.
Não é nosso objetivo, aqui, nem “canonizar” os árabes, nem associar a imagem dos cidadãos israelenses de origem judaica à palavra “terrorismo”. Tão somente apontar e demonstrar que enquanto muitos países muçulmanos surgiram em circunstâncias complexas de guerra, de fragmentação de impérios ou mesmo foram simplesmente inventados por britânicos e franceses, as origens do Estado de Israel são indissociáveis da ação de grupos terroristas como o Palmach, o Irgun e o Lehi.
Nesse sentido, as ideias de “terrorismo”, de “bombas”, de “explosões”, só são associadas imediatamente aos muçulmanos e aos povos árabes por uma operação de desinformação das mídias de massa do Ocidente. Observe-se, porém, que muitas das organizações terroristas sionistas que citamos realizavam também ataques contra alvos judaicos que não fossem considerados suficientemente sionistas, de modo que o que se pretende aqui não é criticar o povo judeu, uma população tradicional e que possui o direito de praticar a sua religião e transmitir a sua herança cultural.
Aqui, especificamente, decidimos deixar de lado as acusações de conexões entre Israel e o ISIS, sobre as quais há muito material, mas que foge ao escopo dessa peça.
Apesar de boa parte dos sionistas se defenderem apelando à definição clássica, original, do sionismo, como essencialmente um “desejo por uma pátria”, a realidade é que, hoje, este termo passou a significar algo bem mais amplo para a maioria dos povos no mundo.
Ainda que se deva sempre afirmar o direito dos judeus de terem seu próprio espaço vital para cultivarem sua religião, cultura e identidade em seus próprios termos, não se pode esquecer, por exemplo, de que um dos principais ânimos contemporâneos dos sionistas radicais é o estabelecimento de uma Grande Israel passando por cima dos países vizinhos. Esse tipo de visão não é marginal, tendo representantes entre autoridades políticas, intelectuais e religiosas do Estado israelense desde sua fundação.
Mas a verdade é que os reais beneficiários de todos esses projetos serão sempre apenas uma minoria e, a longo prazo, inclusive os judeus sairão prejudicados seriamente por esse tipo de liderança, como a de um Benjamin Netanyahu.
A única saída, em nossa opinião, é afirmar a multipolaridade em contraposição ao sionismo, para a construção de um arranjo regional na qual judeus, cristãos e muçulmanos, das várias origens étnicas, possam coexistir em harmonia.
Se isso se dará pela formação de Dois Estados, por uma construção estatal conjunta ou alguma outra fórmula política, caberá aos envolvidos decidir, de preferência sem interferência das grandes potências.