Segundo Mundo, Semiperiferia e Estado-Civilização na Teoria do Mundo Multipolar

19.12.2022
Historicamente é comum abordar, de forma dicotômica, os conceitos de Primeiro Mundo e Terceiro Mundo sem dar muita atenção o que se encontra na posição intermediária. Segundo Alexander Dugin, porém, é precisamente o conceito de Segundo Mundo que precisa ser resgatado, nos termos da ideia de Estado-Civilização, para ajudar a construir a multipolaridade.

A transição de fase do unipolarismo para o multipolarismo e os três conceitos

Para entender a transformação fundamental da ordem mundial que temos diante de nós, e especialmente a transição de um modelo unipolar (globalista) para um modelo multipolar, diferentes unidades conceituais e métodos podem ser usados. Eles devem se desenvolver gradualmente em uma teoria mais ou menos coerente de um mundo multipolar. Propus a primeira versão desta teoria em meus trabalhos Teoria de um Mundo Multipolar e Geopolítica do Mundo Multipolar [1], mas estas são apenas as primeiras abordagens de um tema tão sério.

Neste artigo, quis chamar a atenção para três conceitos que podem ajudar melhor a compreender o conteúdo básico da transição global que está ocorrendo no sistema de Relações Internacionais. É o que explica as principais tendências, conflitos e problemas de nosso tempo, desde o conflito na Ucrânia até o problema de Taiwan e muitos outros locais. Se entendermos a estrutura da transição de fase, entenderemos o significado dos eventos atuais, mas esta transição também requer uma descrição conceitual. É para isso que servem os três conceitos discutidos neste artigo.

O Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos

Antes de mais nada, devemos prestar atenção à teoria dos “três mundos”, agora um pouco esquecida, popular na era da “guerra fria”. Esta é a base da noção de “terceiro mundo” que se tornou um conceito popular e persistente nas teorias das relações internacionais e, de modo mais geral, na linguagem política [2]. Entretanto, o termo “primeiro mundo” não recebeu tal elaboração, enquanto que o conceito de segundo mundo dificilmente ou nunca foi utilizado. Entretanto, é o conceito de segundo mundo e suas principais características que melhor se ajustam à ordem multipolar e melhor descrevem os principais atores da multipolaridade.

A teoria do zoneamento tríplice – primeiro, segundo e terceiro – baseia-se numa avaliação do nível de progresso tecnológico, eficiência econômica e taxas de crescimento, industrialização e pós-industrialização, e a posição de um país na distribuição global da mão-de-obra.

O primeiro mundo foi considerado, durante a época da Guerra Fria, o Ocidente, os Estados Unidos e seus principais aliados, incluindo o Japão. O Ocidente não era considerado geograficamente, mas civilmente. A categoria Primeiro Mundo incluía países com uma economia capitalista desenvolvida, regimes liberal-democráticos, alta prevalência de centros urbanos e industriais (alto nível de urbanização), mas acima de tudo, altas taxas de crescimento econômico, potencial científico e técnico, liderança financeira, posse de armas de última geração, domínio na esfera estratégica, medicina avançada, etc. O Primeiro Mundo era visto como o modelo final da sociedade humana, a vanguarda do progresso e a expressão visível do destino de toda a humanidade. Os outros dois mundos eram vistos como destinados a alcançar o Primeiro Mundo, aproximando-se cada vez mais dele.

Como foi o Primeiro Mundo que foi tomado como modelo universal, os outros “dois mundos” foram descritos em comparação com ele.

O Terceiro Mundo era exatamente o oposto do Primeiro Mundo. Era uma área muito atrasada em relação ao Ocidente, com uma economia estagnada e em desenvolvimento lento (ou não desenvolvida), desenvolvimento científico e tecnológico mínimo, uma moeda instável, uma fase inicial da democracia combinada com instituições políticas arcaicas, um exército fraco e incompetente, baixa industrialização, corrupção generalizada, medicina subdesenvolvida, analfabetismo generalizado e uma população predominantemente rural [3]. O Terceiro Mundo era totalmente dependente do Primeiro Mundo e às vezes do Segundo Mundo, e a soberania dos países do Terceiro Mundo era uma mera convenção sem conteúdo real [4]. O Primeiro Mundo sentia-se obrigado a assumir a responsabilidade pelo terceiro mundo, daí a teoria do “desenvolvimento dependente” [5], os gigantescos empréstimos não reembolsáveis e o estabelecimento de uma curadoria direta sobre as elites políticas, econômicas e intelectuais desses países, alguns dos quais foram incorporados aos sistemas educacionais do primeiro mundo.

O Segundo Mundo, porém, na época da Guerra Fria, foi dotado de certas características peculiares. Referia-se aos regimes socialistas que, embora rejeitando a economia política do capitalismo, ou seja, em oposição ideológica direta ao “Primeiro Mundo”, tinham, no entanto, alcançado um nível de desenvolvimento comparável ao dos países do “Primeiro Mundo”. Entretanto, em termos de indicadores agregados (cujos critérios foram formulados pelo Primeiro Mundo, o que permite um certo preconceito ideológico e uma certa motivação), o Segundo Mundo ainda estava atrasado em relação ao Primeiro Mundo. No entanto, o atraso não foi tão significativo quanto no caso do Terceiro Mundo.

O Segundo Mundo significava principalmente a URSS, mas também os países do Bloco Oriental (especialmente na Europa Oriental).

O conceito de Segundo Mundo é importante como um precedente para o Primeiro Mundo reconhecer que, mesmo seguindo um cenário de desenvolvimento alternativo ao capitalismo liberal, é possível alcançar resultados que são cumulativamente comparáveis aos do Ocidente. É isto que distingue o Segundo Mundo do Terceiro Mundo. O Segundo Mundo tinha o potencial de se opor efetivamente ao primeiro e desafiar a universalidade de seu modelo, e esta eficácia teve expressão muito concreta em termos de taxas de crescimento econômico, número de ogivas nucleares, nível de potencial científico, educação, proteção social, urbanização, industrialização, etc.

O Primeiro Mundo correspondia ao campo capitalista ocidental, o Segundo Mundo ao bloco oriental e aos países socialistas.

Os dois mundos estavam em equilíbrio instável. Era instável porque o Primeiro Mundo insistia em sua supremacia e o Segundo Mundo só tinha que se opor a ele, adotando parcialmente do Primeiro Mundo certos elementos de economia, tecnologia, etc.

O Primeiro e Segundo Mundos projetavam sua influência sobre o Terceiro Mundo, que era o principal campo de batalha.

Todos os países do Terceiro Mundo estavam divididos em capitalista e socialista, embora houvesse também um “Movimento dos Não Alinhados” cujos membros tentavam justificar sua própria estratégia de desenvolvimento – sem os dogmas do capitalismo e do socialismo, mas isto não se desenvolveu em uma teoria independente e se tornou um sistema de compromissos e combinações, dependendo da situação específica. Entretanto, os critérios do Primeiro Mundo (capitalismo) ou sua reinterpretação doutrinária na ideologia do Segundo Mundo (socialismo) serviram de modelo.

A espinha dorsal da política internacional na época da Guerra Fria foi, portanto, o confronto entre o Primeiro Mundo e o Segundo Mundo. Isto se reflete no modelo bipolar.

É importante notar, como faz John Hobson [6], que esta divisão de tipos de sociedade corresponde à tríade clássica da antropologia racista do século XIX (Morgan [7], Tyler [8], etc.), que distinguia “civilização”, “barbárie” e “selvageria”. Ao mesmo tempo, “branco” correspondia a “civilização”, amarelo a “barbárie” e preto a “selvageria”. Este modelo só foi abandonado definitivamente na antropologia ocidental após a Segunda Guerra Mundial, mas foi mantido para avaliar o desenvolvimento político e econômico dos países e sociedades.

Assim, o Primeiro Mundo foi identificado com “civilizações” (primeiro, com o “homem branco” e seu “fardo” em Kipling), o Segundo Mundo com “barbárie” (daí o provérbio racista “risque um russo e você encontrará um tártaro”), o Terceiro Mundo com selvageria – com os “povos da África e Oceania” (geralmente com “negros”).

O Segundo Mundo: uma definição ampliada

Uma coisa a ser notada é que na época da Guerra Fria as coisas geralmente eram ignoradas. Mesmo o Império Russo no século XVIII e início do século XX era um Segundo Mundo em comparação com o Ocidente. Enquanto a industrialização estava em pleno andamento na Europa Ocidental, o Império Russo ainda era um país predominantemente agrícola. Na Europa Ocidental, o capitalismo e a democracia burguesa tomaram posse, enquanto o Império Russo mantinha sua monarquia. Centros científicos autônomos operavam na Europa Ocidental, enquanto o Império Russo copiava assiduamente a ciência e a educação europeia. Entretanto, o Império Russo foi capaz de enfrentar o Ocidente, defender sua soberania e seu modo de vida e vencer guerras.

Esta observação muda significativamente o conteúdo do conceito do Segundo Mundo. Se ela é aplicável tanto à URSS e aos países sob sua influência como ao Império Russo, que ocupava aproximadamente o mesmo território, então deve ser entendida como algo mais generalizado do que a URSS.

O Segundo Mundo, amplamente compreendido, é um modelo político-econômico e ideológico que é uma alternativa ao capitalismo global e desafia o domínio e a hegemonia do Ocidente (Primeiro Mundo).

Neste sentido, a queda da URSS, embora uma catástrofe para o Segundo Mundo (como a queda do Império Russo antes dele), não foi o fim da mesma. Já depois de 1991, os novos contornos do Segundo Mundo começaram a tomar forma. Alguns países que haviam sido considerados “Terceiro Mundo” durante a Guerra Fria – China, Índia, Brasil, África do Sul – deram um claro passo em frente e alcançaram um nível de desenvolvimento comparável ao do Primeiro Mundo dentro de três décadas. É claro que eles usaram principalmente as ferramentas do capitalismo global para fazê-lo, mas foram capazes de adaptá-las de forma a preservar sua soberania e fazer bom uso do capitalismo (ao invés do contrário, como foi o caso das reformas liberais na Europa Oriental e na Rússia nos anos 90).

Desde o início dos anos 2000, com a ascensão de Vladimir Putin ao poder, a Rússia, herdeira do Segundo Mundo da fase anterior, começou gradualmente a restaurar sua soberania geopolítica, mas desta vez um modelo multipolar em vez de bipolar, começou a tomar forma. Neste caso, o Primeiro Mundo foi oposto não por uma única potência, mas por várias, e a ideologia deste confronto (que ocorreu em cada centro do Segundo Mundo com diferentes graus de radicalidade e clareza ideológica) não era o socialismo (com exceção da China), mas um antiglobalismo indefinido e uma rejeição puramente realista da hegemonia ocidental (especialmente norte-americana).

Os países do Segundo Mundo não formaram um bloco ideológico. Eles se tornaram um cinturão objetivo de poder, reivindicando seu próprio caminho, qualitativamente diferente do globalismo do Primeiro Mundo.

Cientistas políticos e economistas notaram este fenômeno como um fato consumado, unindo os países do Segundo Mundo da era pós-bipolar na construção convencional dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China), depois da inclusão da África do Sul – BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul).

Em algum momento, os governos dos BRICS compreenderam o raciocínio objetivo por trás deste zoneamento da civilização e começaram a desenvolver suas relações dentro deste paradigma. Assim, começou a formação cautelosa e gradual de um novo modelo de Segundo Mundo. Desta vez multipolar, na medida em que cada membro dos BRICS é um fenômeno soberano, independente dos outros membros do clube.

No sistema BRICS, a Rússia é o líder militar indiscutível e, em parte, também o líder dos recursos.

A China é o líder econômico indiscutível.

A Índia é o terceiro maior polo, com uma forte infraestrutura econômica e industrial, uma demografia impressionante e uma sociedade altamente consolidada politicamente.

O Brasil representa simbolicamente toda a América Latina e seu enorme potencial (ainda não totalmente revelado), bem como uma forte potência com um forte componente militar, comercial e científico.

A África do Sul, um dos países mais desenvolvidos do continente africano, também representa simbolicamente a nova África pós-colonial, com seu enorme potencial.

Semiperiferia

Passemos agora a uma teoria diferente: a “análise do sistema-mundo” construída por Immanuel Wallerstein [9]. Wallerstein, expoente da escola marxista de Relações Internacionais (especialmente em sua interpretação trotskista), com base na doutrina do “longo prazo” (F. Braudel [10]) e nos teóricos latino-americanos da economia estrutural (R. Prebisch [11], C. Furtado [12]), desenvolveu um modelo de zoneamento mundial de acordo com o nível de desenvolvimento do capitalismo. Esta visão representa um desenvolvimento das ideias de Vladimir Lênin sobre o imperialismo [13] como o mais alto estágio de desenvolvimento do capitalismo, segundo o qual o sistema capitalista gravita naturalmente em direção à globalização e à difusão de sua influência sobre toda a humanidade. As guerras coloniais entre as potências desenvolvidas são apenas o estágio inicial. O capitalismo está gradualmente realizando a unidade de seus objetivos supranacionais e formando o núcleo do governo mundial. Isto é totalmente consistente com a teoria liberal das Relações Internacionais, onde o fenômeno do “imperialismo”, entendido criticamente pelos marxistas, é descrito em termos apologéticos como o objetivo de uma “sociedade global”, o Mundo Único.

A expressão geográfica da teoria sistema-mundo é a identificação de três níveis [14].

O centro, o núcleo ou “Norte rico”, constitui a zona de desenvolvimento máximo do capitalismo. A América do Norte e a Europa Ocidental correspondem ao núcleo, ou seja, o atlantismo e a civilização da Europa Ocidental a ele correspondente, cujo polo se deslocou no século XX para os Estados Unidos. O núcleo do sistema-mundo de Wallerstein coincide com o “Primeiro Mundo”.

Ao redor do núcleo está o primeiro anel, que na teoria de Wallerstein é chamado de “semiperiferia”. Ele compreende países que são inferiores ao núcleo em termos de desenvolvimento, mas estão tentando desesperadamente alcançar o que consideram ser o modelo. Os países da semiperiferia também são capitalistas, mas adaptam modelos de capitalismo às suas características nacionais. Como regra, regimes “cesaristas” (segundo a nomenclatura de A. Gramsci [15]) são formados neles, ou seja, a hegemonia liberal é aceita apenas parcialmente – especialmente na economia, tecnologias e modelos de industrialização, enquanto modelos locais correspondentes a modelos pré-capitalistas ou não-capitalistas continuam a dominar o sistema político, a cultura e a consciência social.

A semiperiferia de Wallerstein compreende os países mais desenvolvidos da América Latina, especialmente Brasil, Índia, China e Rússia. Em outras palavras, estes são novamente os países do BRIC ou clube BRICS, ou seja, o “Segundo Mundo”.

A periferia de Wallerstein corresponde ao que foi originalmente entendido como o “Terceiro Mundo” com as mesmas características básicas – subdesenvolvimento, atraso, ineficiência, arcaísmo, não-competitividade, corrupção, etc. – como o “Segundo Mundo”. Isto também é referido como o “Sul pobre”.

Na teoria dos sistemas-mundo de Wallerstein, segue-se uma declaração sobre a principal tendência de desenvolvimento. Ela deriva da crença marxista no progresso e na mudança das formações econômicas. Isto significa que entre o núcleo, a semiperiferia e a periferia não existem apenas relações espaciais, mas também históricas e temporais.

A periferia corresponde ao passado, à ordem arcaica pré-capitalista.

O núcleo corporifica o futuro universal, o capitalismo global (daí a globalização).

A semiperiferia é a zona onde ocorre a decomposição no que retorna ao núcleo e no que colapsa na periferia. De acordo com Wallerstein, a semiperiferia não é uma alternativa ao capitalismo, mas apenas uma etapa atrasada do mesmo. É um futuro atrasado. O próprio Wallerstein não estava, portanto, particularmente interessado na semiperiferia, traçando apenas aquelas tendências que confirmavam a divisão de tais sociedades em uma elite liberal globalista e as massas cada vez mais arcaicas e proletarizadas. Wallerstein previu que a semiperiferia logo se dividiria em núcleo e periferia e deixaria de existir.

Quando a semiperiferia desaparecer, o mundo inteiro se tornará global: o Norte rico interagirá diretamente com o Sul pobre, onde mais uma vez as elites serão incluídas no núcleo e as massas, misturadas com as massas das outras áreas em uma migração global, se tornarão o proletariado mundial internacional. Neste ponto terá início a revolução proletária prevista por Marx, a crise do sistema capitalista mundial e, posteriormente, do comunismo. E isto só deve acontecer após a conclusão do processo de globalização capitalista e, portanto, após a abolição da semiperiferia. Como trotskista e antistalinista, Wallerstein acreditava que o socialismo não poderia ser construído em um país, nem na URSS nem na China, mas seria apenas um adiamento da globalização e, portanto, da revolução mundial que se lhe seguiria. Assim como Marx e Engels em seu Manifesto do Partido Comunista [8] enfatizaram que enquanto a burguesia luta com as instituições medievais, os comunistas deveriam apoiá-la e somente após o sucesso das revoluções burguesas deveriam entrar em confronto direto com os capitalistas, da mesma forma que Wallerstein e a maioria dos marxistas e esquerdistas culturais contemporâneos são a favor da globalização contra a preservação da soberania pelas potências individuais, somente para confrontá-las de forma decisiva após a vitória total dos liberais e globalistas. É por isso que eles não chamam sua doutrina de antiglobalismo, mas alterglobalismo, propondo projetos de pós-liberalismo em vez de antiliberalismo [16].

Uma leitura multipolar do semipolarismo

No contexto de um mundo multipolar, o sistema mundial de Wallerstein como um todo é antes a antítese. O multipolarismo vê o próprio fenômeno da semiperiferia de uma maneira muito diferente. Não é apenas uma condição temporária de sociedades atrasadas ainda não incluídas no núcleo, mas a possibilidade de um curso alternativo da história que rejeita a universalidade do capitalismo e a globalização liberal e nega ao núcleo o direito de ser sinônimo de futuro e um exemplo de destino universal. A semiperiferia não é vista como um fenômeno intermediário entre o núcleo e a periferia, mas como uma combinação independente de uma identidade civilizatória central que permanece inalterada e um processo de modernização. Huntington [17], que falou de um choque de civilizações em substituição ao mundo bipolar, usou a expressão “modernização sem ocidentalização”. Esta é uma estratégia consciente das elites da semiperiferia, que optam por não se integrar nas elites globais do núcleo, mas permanecer como classe dominante no contexto da civilização da semiperiferia. É o que vemos na China, em países islâmicos e, em certa medida, na Rússia.

O conceito de semiperiferia, desligado do contexto marxista-trotskista da teoria sistema-mundo, revela-se idêntico ao do “Segundo Mundo”. Isto nos permite focalizar com mais detalhes os vetores das relações entre os países da semiperiferia (BRICS) e os países do núcleo e da periferia da rede.

Combinar o potencial dos países semiperiféricos e estabelecer um diálogo intelectual entre as elites que decidiram conscientemente não se integrar no núcleo do capitalismo liberal global resulta em um projeto com recursos comparáveis e até maiores do que o potencial agregado do núcleo (Primeiro Mundo), mas com um vetor de desenvolvimento completamente diferente. Intelectualmente, a semiperiferia não age aqui como o território de um “futuro atrasado”, mas como uma zona de livre escolha, que pode a qualquer momento combinar soberanamente elementos de “futuro” e “passado” em qualquer proporção. É suficiente abandonar o dogma liberal e marxista do tempo linear e do progresso sócio-técnico, mas isto não é tão difícil quanto parece, porque as teorias confucionistas, islâmicas, ortodoxas, católicas e hindus do tempo não conhecem o dogma do progresso e veem o futuro no qual capitalistas e marxistas insistem como puramente negativo, como um cenário escatológico apocalíptico, ou têm uma visão completamente diferente do mesmo.

A semiperiferia (o Segundo Mundo) deixa então de ser uma etapa intermediária e uma área cinzenta entre “progresso” e “barbárie”, “civilização” e “arcaica”, mas se estabelece como um campo de civilizações soberanas que estabelecem elas mesmas critérios, normas e medidas básicas – em relação à natureza humana, Deus, imortalidade, tempo, alma, religião, gênero, família, sociedade, justiça, desenvolvimento, etc.

O próprio núcleo perde assim seu status de objetivo universal e se torna apenas uma civilização entre outras. O Segundo Mundo afirma: tudo é uma semiperiferia, da qual se pode ir ou para o núcleo ou para a periferia, e os próprios países do núcleo não são um exemplo abstrato de um futuro universal, mas apenas uma das regiões da humanidade, uma de suas províncias, que fez sua escolha, mas esta escolha deve permanecer dentro de suas fronteiras.

Estados-Civilizações

Chegamos a um terceiro conceito, crucial para entender a transição de um mundo unipolar para um mundo multipolar e o lugar dos países BRICS neste processo. Estamos falando do conceito de Estado-civilização. Esta ideia foi formulada por estudiosos chineses (em particular pelo professor Zhang Weiwei [19]) e, na maioria das vezes, o conceito de Estado-Civilização é aplicado à China moderna e, em seguida, por analogia com a Rússia, Índia, etc. No contexto russo, uma teoria semelhante foi apresentada pelos eurasianos, que propuseram o conceito de Estado-Paz [20]. Na verdade, nessa tendência, a Rússia foi entendida como uma civilização, não apenas um dos países, daí o principal conceito eurasiático – Rússia-Eurásia.

Na verdade, Samuel Huntington já havia sugerido a mudança para a civilização como um novo sujeito nas relações internacionais em seu artigo perspicaz, se não presciente, “O Choque das Civilizações” [21]. O especialista anglo-italiano em Relações Internacionais Fabio Petito [22] salientou que as relações entre civilizações não produzem necessariamente conflitos, assim como na teoria realista das Relações Internacionais é sempre possível uma guerra entre qualquer Estado-nação (isto deriva da definição de soberania), mas longe de acontecer sempre na prática. O que importa é a mudança no sujeito da soberania, do Estado-nação para a civilização. Isto é exatamente o que Huntington prevê.

O Estado-Civilizatório é definido através de duas negações:

  • não é a mesma coisa que o Estado-nação (na teoria realista), e
  • não é a mesma coisa que um governo mundial unindo a humanidade (na teoria liberal).

É um meio-termo: o Estado-Civilização pode abranger diferentes povos (nações), confissões e até subestados. Mas ela nunca reivindica exclusividade e alcance planetário. É fundamentalmente em grande escala e durável, independentemente da mudança de ideologias, fachadas, culturas e fronteiras formais. O Estado-Civilização pode existir como um império centralizado, ou como seus ecos, restos, fragmentos, capazes sob certas circunstâncias históricas de remontar em um único todo.

O Estado-nação surgiu na Europa nos tempos modernos. O Estado-Civilização existe desde tempos imemoráveis. Huntington observou uma nova emergência da civilização em uma situação particular. Na segunda metade do século XX, os Estados-nações inicialmente se fundiram em dois blocos ideológicos, capitalista e socialista, e mais tarde, após o colapso da URSS, a ordem liberal prevaleceu no mundo (Fim da História de Fukuyama[23]). Huntington acreditava que o unipolarismo e a vitória global do Ocidente capitalista liberal era uma ilusão a curto prazo. A disseminação global do liberalismo pode completar a decadência dos Estados-nações e abolir a ideologia comunista, mas não pode substituir identidades civilizacionais mais profundas que aparentemente desapareceram há muito tempo. Gradualmente, foram as civilizações que reivindicaram ser os principais atores na política internacional – seus súditos, mas isto implica conferir o status de “politização”, daí o conceito de Estado-Civilização.

Há forças e padrões em ação no Estado-Civilização que a ciência política ocidental moderna não consegue entender. Eles não são redutíveis às estruturas do Estado-nação e não podem ser compreendidos pela análise macro e microeconômica. Os termos “ditadura”, “democracia”, “autoritarismo”, “totalitarismo”, “progresso social”, “direitos humanos”, etc., não têm significado aqui ou requerem uma tradução fundamental. A identidade cívica, o significado estatal e social da cultura, o peso dos valores tradicionais: todos esses aspectos são deliberadamente descartados pela ciência política moderna e só vêm à tona no estudo das sociedades arcaicas. Entretanto, tais sociedades são notoriamente fracas politicamente e servem como objetos de pesquisa ou modernização. As civilizações-Estado têm seu próprio poder soberano, seu próprio potencial intelectual, sua própria forma de autoconsciência. Eles são sujeitos, não objetos, de estudo ou de “ajuda ao desenvolvimento” (ou seja, de colonialismo disfarçado), não apenas se limitam a recusar o Ocidente como um modelo universal, mas corta severamente a influência do poder brando ocidental dentro de suas próprias fronteiras. Eles estendem sua influência além das fronteiras nacionais, não apenas defendendo, mas também contra-atacando, propondo suas próprias teorias de integração e projetos ambiciosos. Como o BRI ou a Comunidade Econômica Eurasiática, a OCX ou os BRICS.

A China é tomada como exemplo de um Estado-Civilização por uma razão. Sua identidade e seu poder são os mais ilustrativos. A Rússia contemporânea se aproximou desse status, e a operação militar especial na Ucrânia, acompanhada de sua retirada das redes globais, é prova dessa vontade profunda e poderosa. Mas enquanto a Rússia e em grande parte a China estão construindo com sucesso seus Estados-Civilização em confronto direto com o Ocidente, a Índia (especialmente sob o governo nacionalista de Modi) está tentando alcançar o mesmo resultado, confiando no Ocidente, e muitos países islâmicos visando o mesmo objetivo (especialmente Irã, Turquia, Paquistão, etc.) estão combinando ambas as estratégias – confronto (Irã) e aliança (Turquia). Mas em todos os lugares eles estão caminhando em direção a uma coisa: o estabelecimento de um Estado-Civilização.

O Segundo Mundo como um novo paradigma universal das Relações Internacionais

Agora vamos juntar estes conceitos. Temos uma série conceitual:

  • Segundo Mundo – Semiperiferia – Estado-Civilização

“Segundo Mundo” é uma definição que enfatiza o caráter intermediário dos países que hoje optam pelo multipolarismo e rejeitam o unipolarismo e o globalismo, ou seja, a hegemonia do “Primeiro Mundo”. Em termos de nível de desenvolvimento econômico e grau de modernização, o “Segundo Mundo” corresponde à semiperiferia da teoria do sistema-mundo. Entretanto, ao contrário de Wallerstein, esta semiperiferia não reconhece a inevitabilidade da divisão em uma elite integrada no globalismo mundial e uma massa selvagem e arcaica, mas afirma a identidade e unidade da sociedade que compartilha uma identidade única, tanto acima como abaixo.

Os polos do “Segundo Mundo” (a semiperiferia) são Estados-Civilizações – tanto reais (China, Rússia) quanto potenciais (mundo islâmico, América Latina, África).

Armados com este aparelho, podemos agora compreender melhor os BRICS. Até agora é uma aliança bastante convencional, ou melhor, um clube de Estados-Civilizações (explícito e implícito), representando o “Segundo Mundo” e cumprindo os critérios básicos da semiperiferia. Entretanto, este clube encontra-se em uma situação excepcional no contexto atual: o século XX assistiu a uma erosão significativa da soberania dos Estados-nações, que perderam grande parte de seu conteúdo devido à formalização excessiva de seu status dentro das Nações Unidas e sua divisão em campos ideológicos. Em um sistema bipolar, a soberania era quase garantida em favor dos dois principais centros de decisão – Washington e Moscou. Eram estes polos que eram absolutamente soberanos, e todos os outros Estados-nações apenas parcialmente e relativamente. O fim da URSS e a dissolução do Pacto de Varsóvia não levou a uma nova consolidação dos Estados-nações, mas cimentou temporariamente o mundo unipolar, que no curso da globalização tentou insistir que apenas Washington e o sistema liberal ocidental de valores e regras tinham soberania a uma escala universal a partir de agora.

O próximo passo lógico teria sido a declaração de um governo mundial, como exigido por Fukuyama, Soros e Schwab, o fundador do Fórum de Davos. Mas este processo foi descarrilado, tanto por contradições internas quanto – o mais importante! – a rebelião direta da Rússia e da China contra o unipolarismo estabelecido. Foi assim o “Segundo Mundo”, a semiperiferia e os Estados-Civilizações que desafiaram o globalismo e se prepararam para seu colapso, e o que parecia ser um fenômeno temporário e transitório – a semiperiferia, os BRICS – acabou se revelando algo muito maior. Isto preparou o cenário para um mundo multipolar no qual o “Segundo Mundo”, a semiperiferia e os Estados-Civilizações se tornaram os principais criadores de tendências na política mundial, indo muito além do status que as teorias ocidentocêntricas das relações internacionais, incluindo a versão trotskista do marxismo (Wallerstein) prescreveram para eles.

A tese do Estado-Civilização, se apoiada pelos membros do clube multipolar, ou seja, o “Segundo Mundo” (principalmente os países BRICS), significaria uma reestruturação completa de todo o quadro mundial.

O Ocidente, o “Primeiro Mundo”, o núcleo, será transformado de um centro global para um regional. De agora em diante, não será mais a medida das coisas, mas um dos Estados-Civilizações, ou mesmo dois: América do Norte e Europa. Mas além deles, haverá Estados-Civilizações equivalentes – China, Rússia, Índia, mundo islâmico, América Latina, África, etc. – bastante competitivos e de igual valor em todos os sentidos. Nada neles será futuro ou passado, mas todos se tornarão zonas de presente e livre escolha.

Este é o futuro, mas já está claro agora que quando os potenciais dos dois Estados-Civilizações são somados, seu potencial combinado é capaz de equilibrar o Ocidente nos principais parâmetros, o que já o torna relativo e reduz suas reivindicações globais a limites regionais bastante definidos. É a definição dessas novas fronteiras do Ocidente, que está deixando de ser um fenômeno global e se transformando em uma potência regional (de um governo e núcleo mundial a um Estado-Civilização ocidental), que está determinando a operação militar da Rússia na Ucrânia e o provável estabelecimento do controle direto da China sobre Taiwan.

As mudanças na ordem mundial ocorrem frequentemente (mas nem sempre) através de guerras, incluindo as guerras mundiais. A construção de um mundo multipolar acontecerá, infelizmente, através de guerras. Se as guerras como tais não podem ser evitadas, é possível limitar deliberadamente seu alcance, determinar suas regras e estabelecer suas leis. Para isso, porém, é necessário reconhecer a lógica na qual se baseia o multipolarismo e, consequentemente, examinar os fundamentos conceituais e teóricos de um mundo multipolar.

Notas

[1] Dugin A. The Theory of a Multipolar World. Budapest: Arktos Media Ltd, 2021.
[2] Aijaz Ch. K. The political economy of development and underdevelopment. New York: Random House, 1973.
[3] Rangel C. Third World Ideology and Western Reality. New Brunswick: Transaction Books, 1986.
[4] Krasner S.D. Sovereignty: Organized Hypocrisy. Princeton: Princeton University Press, 1999.
[5] Cardoso F., Falleto E. Dependency and Development in Latin America. Berkeley: University of California Press. 1979; Ghosh, B.N. Dependency Theory Revisited. Farnham, UK: Ashgate Press. 2001.
[6] Hobson J. The Eurocentric Conception of World Politics: Western International Theory, 1760–2010. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
[7] Morgan Lewis Henry. Ancient Society. Tucson: The University of. Arizona Press, 1995.
[8] Tylor Edward Burnett. Researches into the Early History of Mankind and the Development of Civilization. London J. Murray, 1865.
[9] Wallerstein I. The Modern World-System: Capitalist Agriculture and the Emergence of the European World Economy in the Sixteenth Century. New York: Academic Press, 1976
[10] Braudel F. Le Temps du Monde. Paris: Armand Colin, 1979.
[11] Prebisch R. Capitalismo periférico. Crisis y transformación, Santiago de Chile: CEPAL,1981.
[12] Furtado C. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.
[13] Ленин В.И. Империализм, как высшая стадия капитализма. Популярный очерк/ Ленин В.И. Полное собрание сочинений. 5-издание. Т. 27. М.: Политиздат, 1969.
[14] Wallerstein I. World-Systems Analysis: An Introduction. Durham, North Carolina: Duke University Press. 2004.
[15] Грамши А. Избранные произведения: Т. 1—3. — М.: Изд. иностранной литературы, 1957—1959.
[16] Маркс К., Энгельс Ф. Манифест коммунистической партии/ Маркс К., Энгельс Ф. Сочинения. Т. 4. М.: государственное издательство политической литературы, 1955.
[17] Wallerstein I. After Liberalism. New York: New Press, 1995.
[18] Huntington S. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. New York : Simon & Schuster, 1996.
[19] Zhang Weiwei. The China Wave: Rise of a Civilizational State. Singapore: World Scientific Publishing, 2012.
[20] Основы евразийства. М.: Партия «Евразия», 2002.
[21] Huntington S. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order.
[22] Petito F., Michael M.S. (ed.), Civilizational Dialogue and World Order: The Other Politics of Cultures, Religions, and Civilizations in International Relations (Culture and Religion in International Relations). London: Palgrave Macmillan, 2009.
[23]Fukuyama F. The End of History and the Last Man. NY: Free Press, 1992.