Marxismo, multipolaridade e Relações Internacionais

29.11.2017

No campo das teorias das RI [Relações Internacionais], os partidários do realismo e do liberalismo são dominantes. Eles constroem suas conceituações em termos de uma derivação do universalismo do Ocidente, bem como de seus valores e interesses, e, por conseguinte, sustentam e apoiam efetivamente a ordem hegemônica.
Em outro patamar está o modelo unipolar, a abordagem multilateral e até o globalismo apolar, que também são variações da formulação hegemônica – direta ou declaradamente (o unipolarismo e, em uma versão mais leve, o multilateralismo) ou velada e implicitamente (a globalização dos neoliberais e o trans-nacionalismo, assim como os projetos construtivistas, que representam formas de expansão dos códigos ocidentais sobre o planeta).
Em decorrência disso, a elaboração da Teoria do Mundo Multipolar deve se estabelecer a partir da rejeição do próprio cerne da hegemonia ocidental e, logicamente, das teorias das RI que nela se inspiram.
Mais complexa é a questão da teoria marxista nas RI. Por um lado, fazem críticas duras à hegemonia, interpretando-a como uma foram de dominação inerente ao capitalismo: que é uma crítica extremamente relevante e produtiva. Não obstante, por outro lado, [tal crítica] deriva do mesmo ideal eurocêntrico do “progresso” dos tempos modernos, da “evolução”, da “igualdade”, entre outras coisas, o que a coloca no mesmo contexto geral do discurso ocidental.
Mesmo quando os marxistas se mostram solidários com as lutas de libertação dos povos do Terceiro Mundo – e dos países não ocidentais em geral – contra o domínio ocidental, eles vislumbram para tais países um cenário de desenvolvimento universal que reproduza o modo de vida das sociedades ocidentais, não contemplando a possibilidade de uma lógica histórica essencialmente distinta. Os marxistas apoiam as nações não-ocidentais, em suas lutas anticoloniais, com o intuito de que estas passem o mais rapidamente possível pelos estágios ocidentais de evolução e construção societária, do mesmo modo como ocorreu nas sociedades ocidentais. Todas as sociedades teriam de passar pela fase capitalista, e as classes que a compõem devem internacionalizar-se por completo.
Estes aspectos do marxismo nas RI são contrários à Teoria do Mundo Multipolar, uma vez que:
(i) Se inspiram no mesmo universalismo ocidental;
(ii) Reconhecem o vetor unidirecional da História como algo comum a todas as sociedades;
(iii) Indiretamente, justificam a existência do capitalismo e da ordem burguesa, considerando-os como fazendo parte de uma fase necessária do desenvolvimento social: sem passar por esta fase, será impossível a revolução e a construção do comunismo.
O marxismo é o outro lado da hegemonia ocidental. Embora critique os seus aspectos mais falsos e odiosos, revelando sua natureza de classe, não questiona a justificação histórica e nem a fatalidade da ordem das coisas. Os marxistas, e os apologistas do sistema mundial, raciocinam: a hegemonia ocidental é terrível, mas também inevitável – é inútil combate-la diretamente, uma vez que isso irá apenas atrasar o advento da revolução mundial.
Isso significa que a vertente marxista das RI não deve ser compreendida como sendo a antítese da hegemonia, considerando o seu paradoxo e a sua recusa a não-valorização de suas invariáveis metodológicas e conceituais.
[…]
O marxismo e o neo-marxismo nas Relações Internacionais (RI) são extremamente úteis à Teoria do Mundo Multipolar (TMM) como arsenal doutrinário crítico do universalismo da civilização ocidental e da sua pretensão a superioridade moral baseada nos fatores de sua superioridade financeira, material e tecnológica. A civilização ocidental da era moderna optou pela via capitalista e, assim, limitou seus horizontes. Não obstante, a encarnação material do sucesso em um alto nível de desenvolvimento e de eficácia econômica das ações dos mercados e, mais recentemente, na prioridade dada ao desenvolvimento do setor financeiro, podem ser decisivos somente se aceitarmos o padrão capitalista, não só a nível material, mas também no nível dos valores sociais, culturais e espirituais. Foi o que demonstrou perfeitamente Max Weber, que identificou o capitalismo como a expressão da ética protestante, a partir do qual a recompensa do homem no decorrer da vida, por meio do sucesso e da riqueza, é um reflexo direto de sua dignidade moral. A equiparação da riqueza à moral, característica da sociedade ocidental da era moderna, possui raízes religiosas e culturais. O Capital e o capitalismo tornaram-se não só o critério do poder, mas também o critério da verdade.
O marxismo desafia semelhante abordagem e, embora reconheça a influência do Capital, rejeita sua pretensa superioridade moral. A ética marxista organiza-se de modo oposto: o Bem se encontra na classe trabalhadora (proletariado) que, sob o capitalismo, encontra-se escravizada pela parasítica classe burguesa. No marxismo, rico é sinônimo de Mal. Consequentemente, o desenvolvimento material, e a concentração de Capital em determinado país, não querem dizer nada, podendo demonstrar até mesmo que um tal pais configura-se como uma das sociedades mais injustas, más, devendo, como tais, serem rejeitadas.
Na análise das RI, tal ética marxista leva à apreciação moral do “abastado Norte” e do sistema capitalista como uma expressão histórica, geográfica e social do mal mundial. O Ocidente não só não se manifesta como um modelo a seguir, nem na Terra Prometida – na qual se encontraria a solução para todos os problemas –, como também se torna a cidadela da exploração, do engano, da falsidade, da violência e da injustiça.
Sem concordarmos com todas as conclusões dogmáticas desta abordagem acerca da revolução mundial e do papel messiânico do proletariado, a TMM aceita a abordagem marxista no que diz respeito a sua apreciação da natureza e da origem do Ocidente capitalista, denunciando-o como um modelo de exploração assimétrica que impõe os seus critérios civilizacionais (capitalismo, livre mercado, demanda pelo lucro, materialismo, consumismo, etc.) a todos os povos e sociedades. O capitalismo é o aspecto econômico-material do universalismo e do colonialismo ocidental. Ao aceitarmos a lógica do Capital, mais cedo ou mais tarde seremos obrigados a aceitar e a reconhecer o Ocidente e a sua civilização como guias, pontos de orientação, modelos exemplares e horizontes de desenvolvimento: o que está em completa contradição com a ideia de uma ordem mundial multipolar e da valorização da pluralidade civilizacional. Algumas civilizações podem aceitar a prosperidade material e a forma capitalista de atividade econômica como aceitáveis e desejáveis, mas outras podem ser que não. O capitalismo não é obrigatório e não é também a única forma de organização econômica. Pode ser aceito ou rejeitado. A equiparação do bem-estar material à dignidade moral pode ser justificada por uns e rejeitada por outros. Portanto, para a TMM, o vetor anticapitalista do marxismo, e do neo-marxismo nas RI, bem como a denúncia característica do modelo de desenvolvimento dependente, são componentes que podem ser bem aplicados. O mesmo vale para a crítica do “abastado Norte” e ao apelo à oposição ao sistema mundial. Sem esta resistência e oposição será impossível o advento do mundo multipolar.
A principal diferença entre a TMM e a teoria neo-marxista do sistema mundial (bem como em relação aos projetos de Negri, Hardt e de outros altermundialistas) consiste no fato da TMM não reconhecer, em absoluto, o fatalismo histórico das teorias marxistas, que insistem na premissa do capitalismo como uma fase generalizadamente obrigatória e universal do desenvolvimento histórico, a qual será seguida da fase igualmente fatal e irrevogável da revolução proletária. Para a TMM, o capitalismo é uma forma empiricamente fixa de desenvolvimento da civilização ocidental-européia, enraizada na cultura desta e difundida quase em escala planetária. Mas uma análise profunda do capitalismo nas sociedades não-ocidentais demonstra, com certa consistência, a sua natureza simuladora e superficial, dotada de propriedades semânticas muito distintas e representando sempre algo atípico e diferente da formatação socioeconômica que prevalece no Ocidente moderno. O capitalismo surgiu no Ocidente e pode tanto continuar a evoluir como perecer. Mas a sua expansão para além do mundo ocidental, embora condicionada pela tendência expansionista do Capital, não tem razão de ser nas sociedades não-ocidentais onde ele projeta-se. Cada civilização possui sua própria noção de tempo, história, economia e lógica de desenvolvimento material. O capitalismo invade as civilizações não-ocidentais como perpetuador das práticas coloniais e, como tal, pode e deve ser rejeitado, ser alvo de resistência, como se se tratasse de uma agressão por parte de uma cultura e de uma civilização alienígena. Assim, a TMM insiste na luta contra o “Norte rico”, que é travada atualmente em todos os pontos do mapa da humanidade e, principalmente, no “Segundo Mundo” (a semi-periferia, nas palavras de I. Wallerstein).
O mundo multipolar não deve surgir depois do liberalismo (como acreditam os neo-marxistas), mas ao invés do liberalismo. Assim sendo, a luta contra o liberalismo não deve se dar em nome daquilo que irá substituí-lo depois que este se instalar em escala planetária, mas já, de modo a não permitir que ele alguma vez se estabeleça em escala mundial. Para as civilizações não-ocidentais é desnecessário passar pela fase do desenvolvimento capitalista. Tampouco é necessário mobilizar suas populações em prol da revolução proletária. As elites e as massas dos países da “semi-periferia”, a despeito dos neo-marxistas, não estão de todo obrigados a dividirem-se socialmente e a integrarem-se nas duas classes internacionais – a burguesia mundial e o proletariado mundial –, perdendo, assim, todas as suas características civilizacionais. Pelo contrário, as elites e as massas pertencentes a uma mesma civilização devem reconhecer a sua identidade comum, cujo significado deve pesar mais que o da identidade de classe. Se em relação à solidariedade internacional da burguesia e, em menor extensão, do proletariado, os marxistas possuem alguma razão (pois se tratam de Estados capitalistas e burgueses nos quais, de fato, domina a lógica do Capital), no caso das civilizações não-ocidentais as coisas não podem ser colocadas desta forma. O topo e a base no mundo islâmico, por exemplo, estão muito mais cientes da sua cultura islâmica do que seus equivalentes classistas em outras civilizações – em particular no Ocidente. E este sentimento de comunhão, de unidade, não deve ser corroído e nem abalado (seja pelo cosmopolitismo liberal, pelo neo-marxismo ou pelo anarquismo de tipo internacionalista), devendo, ao contrário, ser fortalecido, aprofundado e preservado.
O mundo multipolar, principalmente em seu estágio contra-hegemônico inicial, deve ter como base a solidariedade entre todas as civilizações na sua oposição às práticas colonialistas e globalistas do “Norte rico”. Tal luta deve unir as elites e as massas dentro das suas civilizações, pois o critério das classes (a elite como burguesia e as massas como o proletariado) é uma projeção do padrão ocidental. Nas civilizações não-ocidentais existem, de modo empírico e evidente, estratos sociais mais altos e mais baixos, mas a sua semântica sociológica e cultural difere do modelo redutor no qual o único critério decisivo é o da posse dos meios de produção. A TMM apela à solidariedade das elites e das massas na construção dos pólos do mundo multipolar e na organização dos grandes espaços, de acordo com os caracteres culturais e históricos de cada sociedade.
(Adaptado para o português brasileiro de: Aleksandr, Dugin. Teoria do Mundo Multipolar. Instituto de Altos Estudos em Geopolítica & Ciências Auxiliares [IAEG]: Lisboa, 2012, p. 70-72 / 102-105).