Introdução à Noomaquia (Lição IV) - O Logos de Cibele
Para entender como a cultura indo-européia passou do estágio nômade para o estágio sedentário e o que aconteceu durante essa transição, durante essa mudança na estrutura do momento de Noomaquia, devemos considerar qual era o horizonte existencial que existia em Turan. As tribos indo-européia turanianas turânicas chegaram ao leste da Europa, na Anatólia, nos Bálcãs, no território de Elam na Pérsia, no espaço Indiano, mas todos esses territórios não estavam vazios. Havia alguma outra civilização, havia outros horizontes existenciais, com seu próprio momento de Noomaquia diferente daquele que caracteriza as tribos nômades das estepes. Estamos falando de civilizações pré-indo-europeias que estavam localizadas na Europa, nos Bálcãs, na Anatólia, na Pérsia e na Índia.
Velha Europa
Seguindo a teoria de Marija Gimbutas que mencionamos na lição anterior, existia na Europa, antes da chegada dos indo-europeus, a civilização da “Grande Deusa“, uma civilização muito antiga cujos primeiros pólos estavam localizados nos Bálcãs e na Anatólia. Lepenski Vir e Vinca na Sérvia, Çatalhöyük na Turquia e outros sítios arqueológicos nos contam de uma civilização da Grande Mãe nascida cerca de 7-8 mil anos antes de Cristo. As primeiras ondas migratórias das populações turânicas, por outro lado, aconteceram por volta de 3000 a.C. Portanto, essa civilização existiu antes do aparecimento dos indo-europeus. No caso da Europa, aplica-se o conceito usado por Marija Gimbutas de uma "Velha Europa" ou "Paleo-Europa". Essa civilização paleo-europeia teve seu centro em sítios arqueológicos localizados na Sérvia, Bulgária e outros territórios dos Bálcãs: Karanovo, Starcevo, Tisza, Körös, Panônia, etc.
A civilização da “Velha Europa” era uma civilização matriarcal e era caracterizada pela predominância total de figuras femininas, ausente quaisquer figuras masculinas; além de túmulos sem armas. Essas eram sociedades sedentárias agrícolas que possuíam uma estrutura completamente diferente daquela das tribos indo-europeias de Turan. A esse respeito, recomendo a leitura de "Muterrecht" (O Direito Materno) [1], uma obra clássica de Bachofen, autor já citado na primeira lição. Nesta obra fundamental do século XIX, são examinados os aspectos matriarcais pertencentes às tradições das sociedades ginecocráticas gregas e anatólias, como os lídios, os lícios, os cários, os frígios, os hatitas, etc. Existem vários debates sobre quem eram esses paleo-europeus e quais povos modernos são seus descendentes. Algumas das hipóteses mais plausíveis envolvem povos pré-indo-europeus como os pelasgos, os etruscos e os hatitas (pré-hititas), assim como populações mais modernas do Cáucaso como os georgianos, os daguestanis, os avaros, os chechenos e os abecázios como continuadores dessas populações paleo-européias.
No entanto, o que importa é que se nos referirmos às obras de Bachofen, se seguimos a teoria de Marija Gimbutas ou outros autores, todos concordam que, antes das ondas migratórias que carregam a cultura Kurgan, havia uma civilização diferente com um Logos diferente, e estudando esse Logos não apenas a partir de símbolos, mas também de mitos e contos incorporados nas tradições indo-européias (por exemplo, hitita, helênica ou latina), podemos reconstruir suas características fundamentais.
Em primeiro lugar, a civilização paleo-européia era uma civilização ctônica e mundana: não havia idéia de “Pai Celestial” ou de Luz que desce dos Céus. Pelo contrário, havia a ideia do “nascimento” a partir da Grande Mãe representando a terra e a água, que dá vida a tudo o que existe. Esta é uma lógica que é substancialmente o oposto da apolínea: existe um tipo de substância primordial que dá tudo à luz. Para sublinhar esse conceito, as figuras mais antigas da Mãe têm a parte inferior do corpo descrita de maneira realista, mas não há cabeça, não há rosto nem mãos: a parte superior do corpo é deixada de fora porque não é o centro da atenção. O pivô em torno do qual tudo gira é a barriga de grávida da mãe, que corresponde à origem e ao mesmo tempo ao fim de tudo, ao berço e ao túmulo de tudo. Este era o centro dessa civilização e o centro de sua sacralidade.
Esta civilização foi caracterizada também pelo desenvolvimento de algumas grandes cidades, com locais sagrados no centro, mas sem muralhas. Estes eram assentamentos muito diferentes dos indo-europeus, que pelo contrário estavam todos equipados com muralhas, para indicar sua natureza como construções militares. O assentamento indo-europeu típico não foi desenvolvido a partir de uma ou mais aldeias assentadas, mas constituía uma construção artificial estabelecida para conquistar o território em que iria surgir. Portanto, podemos individualizar dois tipos de cidades: as muradas (indo-européias, turanianas) e as sem muros (pacíficas, sedentárias, agrícolas), que constituíam pura manifestação do Logos de Cibele.
A cultura agrícola foi desenvolvida pelas mulheres. Os primeiros cultivadores eram mulheres que trabalhavam na terra como se fossem parteiras ou doulas. A enxada é o instrumento para preparar o campo para a semente, e essa era uma ferramenta feminina. A terra era trabalhada pelas mulheres. Não é por acaso que a principal ferramenta para arar a terra e prepará-la para semear era a enxada, já que ela era uma ferramenta leve e fácil de manusear – uma ferramenta que poderíamos dizer “feminina” – e não um arado. Portanto, havia pequenas parcelas de terra trabalhadas por mulheres sem o uso de animais (cavalos, bois, etc.).
Esse é um tipo de civilização com uma estrutura completamente diferente, sedentária em vez de nomádica, matriarcal em vez de patriarcal, ctônica em vez de urânica. A mãe é ctônica, o pai é celestial. Não existe Pai Celeste no tipo puramente cibelino de civilização. Há apenas a mãe que cria, que nutre, que destrói e que dá a vida de novo. Então tudo brota da mãe e retorna à mãe. E isso fornece uma imagem inteiramente diferente do cosmos, onde o espaço interior da terra é o centro. Trata-se de algo oculto. Não é o espaço aberto do céu. Não é o fogo, é a água. Não é o dia, é a noite. Não é o aberto, é o fechado. Não é o homem, é a mulher. É algo que emerge do interior, tal como a mulher dá a vida de dentro para fora. E o ventro da mulher é a própria imagem do cosmos, do mundo. Este é um mundo compreendido de uma maneira completamente diferente. O centro não está acima, mas abaixo. A terra não é uma superfície dura na qual nos detemos para retornar ao empíreo. As árvores não nascem de cima ara baixo, as suas raízes não estão no céu, mas nas profundezas. Tudo se baseia na emergência a partir do subterrâneo. O homem não é cremado, como entre os indo-europeus, o que significava devolver o homem ao fogo divino, à luz, mas enterrado em tumbas. Este é o Reino das Mães e não o Reino dos Pais. Mas não se trata aqui de mera oposição direta, e sim de uma perspectiva inteiramente outra. Não poderíamos compreender o conceito de Matriarcado se simplesmente invertermos o sentido do Patriarcado. É uma outra coisa. O Patriarcado, ou civilização indo-europeia, se funda na linha ou no raio solar. Mas aqui tudo se baseia na curva ou na espiral.
Mesmo a maneira de matar é diferente. Aqui você não mata diretamente, não corta a garganta, você aprisiona por artimanhas e sufoca de maneira gentil e confortável. O matriarcado não corresponde à versão feminina da dominação masculina (indo-européia), mas é um tipo particular de sociedade baseado no eufemismo: a morte é vida, as trevas são luz, o sofrimento é a alegria, o passivo é ativo.
Morte e vida são entendidas de maneira completamente diferentes. Não existe espírito imortal que desce dos céus. Há apenas nascimento e morte de uma mesma substância, recombinada de diferentes maneiras. A sociedade é matrilineal, com o pertencimento À família definido pela Mãe e o Pai é desconhecido ou pouco importante, porque não é ele quem dá vida. É apenas a mãe que gera. E em casos radicais não há pai, porque a ideia de que o pai está envolvido na concepção da criança é patriarcal. No matriarcado é a mulher que gera a criança, tendo intercurso com criaturas aladas ou serpentes ou espíritos invisíveis ou incubi que emergem através da noite nos sonhos.
Nesta cultura, as figuras masculinas estão totalmente ausentes: em suas representações, a Grande Mãe estava cercada em ambos os lados por feras, principalmente duas, que gradualmente obtiveram características humanas até se tornarem primeiro meio fera e meio homem, e finalmente o homem em todos os aspectos. O homem era, portanto, uma espécie de derivado, o desenvolvimento humano de uma fera, por sua vez, nascido da Grande Mãe, desde que a criação se origina da substância primordial que dá vida. Isso se traduz em um simbolismo que difere totalmente do que vimos no estudo da cultura turânica indo-europeu. Aqui a única figura masculina presente é a da cobra (ou alternativamente do peixe), algo que vive dentro da Grande Mãe, em uma dimensão subterrânea, pronto para emergir na superfície e depois desaparecer nas profundezas novamente. A figura da cobra representava uma espécie de “macho ausente” e era uma figura absolutamente positiva.
Na visão de mundo puramente matriarcal representada no mito da deusa Cibele – a “mãe frígia” – o conceito da mulher andrógina, Agdistis, é central. E sendo um ser andrógino, Agdistis não precisava se acasalar para a concepção, portanto, ela deu à luz sozinha ao herói anatólico Átis, pelo qual ela se apaixonou – estamos, portanto, lidando com a relação incestuosa entre mãe e filho, uma característica fundamental deste ciclo matriarcal. No entanto, quando Átis cresceu, ele queria se casar com uma mulher humana normal, e isso gerou grande ciúme na Grande Mãe, que fez Átis entrar num transe delirante e, em sua loucura, ele castrou a si mesmo e morreu. Mas nesse ponto, Cibele ficou tão arrasada com a perda de Átis que ela o ressuscitou, tomando-o para seu serviço e ele se tornou seu sacerdote. A partir daqui segue outro traço característico dessa cultura, ou seja, o dos eunucos sacerdotes da deusa Cibele, os chamados “galli”. Essa é a origem das orgias em homenagem à Grande Mãe Cibele. Esta era uma sociedade sedentária pacífica, com a prática de sacrifícios sangrentos, pois o sangue dos sacerdotes masculinos representava uma espécie de alimento para a terra e favorecia a colheita. Mas esse mito também nos diz qual era o destino geral do homem no mundo cibelino.
Sedentarismo dos Indo-Europeus
O horizonte existencial da “Velha Europa” delineado pelos pólos civilizacionais representados por suas grandes cidades, de cerâmica e muitos outros objetos encontrados em sítios arqueológicos, do culto da Grande Mãe, dos templos em sua homenagem, etc., indica uma civilização matriarcal altamente desenvolvida com uma estrutura estável e constante. No sul podemos ver resquícios disso na pedra, mas podemos imaginar como era essa civilização quando todas as construções eram de madeira. É possível que houve enormes centros nos Bálcãs e outros lugares. É interessante que em Lepenski Vir os camponeses da região ainda constroem o mesmo tipo de piso que há 8 mil anos. É interessante a estabilidade dessas estruturas culturais.
Ao mesmo tempo, podemos ver quantos níveis da mitologia da Grande Mãe foram incorporados à sociedade patriarcal, na mitologia grega conhecida por nós. A ideia da castração de Urano por Cronos, e de Cronos por Zeus, é parte desse ciclo matriarcal de usurpação da figura paterna. Assim como as figuras dos titãs eram imagens matriarcais pertencentes a uma tradição anterior. Todos esses elementos provaram ser constantes ao longo do tempo e continuaram presentes nos contos mitológicos e folclóricos até os dias atuais; em outras palavras, eles sobreviveram a milhares de anos de domínio da cultura indo-européia patriarcal. A esse respeito, recomendo a leitura da obra "Sobre o Matriarcado Eslavo" [2] do autor italiano Evel Gasparini, no qual, neste trabalho em três volumes, ele investigou os muitos aspectos matriarcais das tradições eslavas (sérvia, búlgara, russa, tcheca etc.).
Devemos, portanto, reconhecer a presença na sociedade europeia de “dois níveis”, dois horizontes existenciais. Quando as tribos indo-europeias conservavam a sua tradição nomádica, atravessando as estepes turânicas, elas careciam desse segundo nível. Elas possuíam apenas o horizonte da civilização patriarcal. Quando as tribos patriarcais indo-europeias da Turânia chegaram às margens do rio Dniepre, elas encontraram a cultura matriarcal Cucuteni-Tripiliana do outro lado do rio. O encontro produziu uma mistura de dois horizontes existenciais. Este foi um momento noomáquico, de encontro entre o Logos de Apolo, representado pela sociedade indo-europeia, trifuncional e patriarcal, com o Logos de Cibele, representado pela sociedade paleo-europeia. E é interessante que este rio, que há milhares de anos tem sido, como afirma Marija Gimbutas, uma fronteira real entre duas civilizações, a civilização turânica ao leste e o reino da Grande Mãe ao oeste, foi palco de um encontro que produziu uma mudança na estrutura do momento de Noomaquia, coincidindo com a sedentarização dos povos indo-europeus.
Mesmo na Anatólia e na Ásia Menor, se passou mais ou menos o mesmo, com possivelmente o mesmo tipo de população paleo-europeia, mas para o leste havia uma população dravidiana de um tipo diferente. Essa população dravidiana do Irã antigo, pré-indo-europeu, e da Índia antiga também era de tipo matriarcal. Não há certeza se seu fenótipo era parecido ao dos paleo-europeus, o mesmo se eles podem ser categorizados como paleo-europeus. Aparentemente, os paleo-indianos tinham pele escura, mas talvez fossem paleo-europeus de um tom mais escuro, ou não. O que é relevante e interessante, porém, é que do ponto de vista da Noologia eles pertencem ao mesmo tipo de Logos de cibele que descobrimos no subterrâneo da civilização indo-europeia, especialmente na Índia. Na Índia é bastante claro que há o nível da civilização védica e há o nível pré-védico, que é matrarcal, ctônico, com a centralidade de Titãs e Deusas.
Mas também no Ocidente, na Itália, Espanha e Ilhas Britânicas podemos encontrar resquícios dessa civilização matriarcal. Na Península Ibérica, por exemplo, temos os bascos, herdeiros de uma civilização paleo-europeia de tipo matriarcal.
Todo tipo de sociedade indo-européia sedentária conhecida por nós é o resultado da combinação de dois tipos noológicos: o Logos de Apolo patriarcal, ligado ao nível indo-europeu nômade, e o horizonte existencial pré-indo-europeu, muito mais profundo e oculto, do tipo matriarcal, pertencente à civilização paleo-europeia (ou paleo-indiana) que passou a constituir uma espécie de substrato para essas sociedades. Esse é um dos resultados mais importantes, se não o mais relevante, da análise noológica da cultura indo-européia. E devemos pontuar aqui que não estamos lidando apenas com o passado, mas com o presente. O horizonte existencial não é algo que pertence a uma dimensão puramente material, ele é algo vivente, atual.
Toda sociedade indo-européia é, portanto, baseada na superposição de dois horizontes existenciais. Cada cultura indo-européia existente seja celta, francesa, italiana, espanhola, germânica, eslava, grega, iraniana ou indiana – tem dois níveis existenciais e se apoia na Titanomaquia, a Noomaquia ou conflito entre o Logos de Apolo, que é manifesto, e o Logos de Cibele, que em vez disso está oculto e secreto. Friedrich Jünger ele afirmou não por acaso que a ordem dos deuses olímpicos é construída sobre os ombros dos titãs derrotados. Em outras palavras, na base da sociedade heroica indo-européia vive um horizonte existencial cibelino que podemos identificar igualmente na tradição européia (contos populares, mitos, religiões, escritos etc.).
Nossa tradição é essencialmente dupla: formalmente somos indo-europeus a parte “diurna” de nossa sociedade é caracterizada por uma estrutura vertical e patriarcal – mas secretamente, na parte “noturna” vive o horizonte existencial da Grande Mãe, do matriarcado, que se manifesta na sociedade pacifista e democrática. Nossa identidade como povos indo-europeus deve ser considerada essencialmente dupla. Sem o reconhecimento desse segundo nível pré-indo-europeu, não poderíamos explicar nada sobre a sequência histórica de nossa civilização, uma vez que a história européia, como a indiana e a iraniana, se baseia na luta contínua entre esses dois Logoi.
Este é precisamente o nosso momento de Noomaquia: o Logos de Apolo veio de Turan e dominou o Logos de Cibele; isso constitui o evento central da nossa história. Quando as tribos nômades turânicas conquistaram as sociedades sedentárias, eles criaram algo novo, um novo tipo de sociedade formalmente indo-européia, no qual, no entanto, havia algo diferente no subterrâneo. Esta é a diferença entre Irã e Turan em Firdūsī, do qual falamos na lição anterior: o Irã possuía esse horizonte matriarcal, enquanto em Turan ele estava ausente. Então, o conflito entre Turan e Irã em Firdūsī ou no Avesta, em um sentido noológico, é algo diferente do que aparece. A natureza sedentária das sociedades indo-européias indica que um encontro com esse segundo horizonte pré-indo-europeu existencial ocorreu inevitavelmente. que ele foi capturado, sob controle, domesticado e assimilados.
O sedentarismo dos indo-europeus coincidiu com, poderíamos dizer, a “domesticação de Cibele”, a conquista do poder feminino, que foi submetido ao poder masculino, assimilado pelo Dasein indo-europeu. Mas a natureza patriarcal das sociedades indo-européias sedentárias é o resultado de um conflito muito violento que ainda está em andamento, pois o Logos matriarcal de Cibele não pertence exclusivamente ao passado, ele continua a viver em nossa cultura hoje. Vivemos em uma sociedade baseada em dois níveis, onde a titanomaquia, a guerra entre deuses e titãs nunca terminou. O resultado mais importante dessa nossa análise noológica é, portanto, que ela tem, ou tem a ver com uma sociedade e cultura européia fundamentalmente dupla, que, diferentemente da sociedade das estepes, está baseada em dois níveis.
Assimilação de Cibele
No entanto, o sedentarismo teve uma influência diferente nas três castas que compõem a estrutura vertical trifuncional das tribos turanianas. Os sacerdotes e guerreiros dessas tribos tornaram-se, por assim dizer, a “classe dominante” das sociedades indo-europeias sedentárias, mas até hoje nossas forças armadas e nossa classe sacerdotal, mesmo cristã, permanecem fundamentalmente “turânicas”. A sedentarização não alterou sua moral. Eles continuaram a criar fortalezas, a renovar a adoração ao Deus solar, o Pai, e a defender a estrutura hierárquica que caracteriza nossos sistemas políticos e que é a continuação da mesma estrutura indo-européia vertical. Metafisicamente, eles foram tocados de maneira muito limitada pela sedentarização. De fato, eles impuseram sua própria ideologia indo-européia (Dumézil), além de sua própria língua, aos povos conquistados, hoje todos nós falamos línguas indo-europeias. Por milênios, vivemos sob a ideologia indo-européia e com uma classe dominante composta pelos continuadores daquela civilização à qual os conquistadores turanianos pertenciam. Em outras palavras, após a subjugação dos povos paleo-europeus e a consequente sedentarização das tribos turanianas, os povos da Europa viveram em uma sociedade formalmente apolínea em tudo: na cultura, na educação, na filosofia, na ética, na estética e assim por diante.
Um argumento diferente deve ser apresentado para a “terceira função”, isto é, para a casta dos produtores que na sociedade indo-européia trifuncional estava ligada aos aspectos econômicos, referente à produção material. Na sociedade turânica, na qual o Logos apolíneo se manifesta em sua forma mais pura, a terceira função duméziliana era realizada por nômades pastoralistas. Estes eram homens que lidavam com animais grandes (bois, gado, cavalos), que, portanto, precisavam de vastos espaços turânicos para alimentar o gado e tinham que manifestar uma força física considerável para domesticá-los e controlá-los, e, portanto, tinha que ser bastante robustos. Eles eram o responsáveis por toda a alimentação dos chefes, dos líderes, dos guerreiros e dos sacerdotes, eram a casta encarregada de todos os aspectos econômicos e materiais da sociedade.
No entanto, quando as tribos turanianas conquistaram as sociedades sedentárias e se estabeleceram, a terceira casta, diferentemente das duas primeiras, sofreu uma influência considerável da sociedade sedentária, internalizando muitos de seus aspectos. Ocorre que toda a sociedade sedentária conquistada foi absorvida e introduzida na terceira casta. A estrutura socioeconômica paleo-européia foi assimilada à terceira função da sociedade turânica. Isso envolveu antes de tudo o âmbito produtivo, onde vemos uma clara mudança tanto nos métodos de trabalho quanto na composição da própria produção. O cultivo de cereais, ervas e vegetais tornou-se predominante, substituindo a criação nomádica de rebanhos e outros animais. De mãos dadas, a figura masculina ingressou na agricultura: a mulher agricultora que caracterizava a sociedade matriarcal pré-indo-européia foi substituída pelo camponês indo-europeu, que usava o arado em vez da enxada. Então a terra agora era trabalhada por animais – bois ou cavalos domesticados – com o arado duro e pesado, com uma ponta de ferro, impossível para uma mulher manobrar. O doce relacionamento com a terra deu lugar a um relacionamento violento.
A tradição da Grande Mãe, de origem balcânica e anatólia, continuou assim a viver na cultura agrícola das sociedades indo-europeias sedentárias. Primeiro houve uma expansão da civilização matriarcal pré-indo-europeia por toda a Europa. Depois houve a onda das invasões indo-europeias, que criaram sociedades europeias mistas e sedentárias, sob hegemonia indo-europeia. E a realidade é que essa camada campesina pré-indo-europeia matriarcal sempre constituiu parte considerável da população da Europa. Isso explica por que em nossos contos populares, em nossos mitos, em nossas tradições, existem tantos elementos e figuras matriarcais, mais ou menos ocultos. No nível da casta dos trabalhadores, na terceira função das sociedades indo-europeias, muitas histórias foram integradas ao longo do tempo sobre cobras, rainhas, deusas, espíritos, demônios e outras criaturas mitológicas femininas de vários tipos – por exemplo, pense na Rusalka eslava. Isso aconteceu porque, quando as tribos indo-europeias se estabeleceram, assimilaram esse horizonte existencial em sua estrutura.
É como um “pacto histórico” entre vencedores e perdedores. Oficialmente, a civilização da Grande Mãe perdeu essa batalha titânica contra os deuses olímpicos, e essa vitória fundou todo o nosso sistema ético e toda a sequência da história européia, que é a história de como os turanianos conquistaram a “Velha Europa”, a civilização paleo-europeia. No entanto, o horizonte existencial conquistado viveu e ainda vive em nossa sociedade, na terceira função. Poderíamos até escrever uma história da casta européia de cultivo completamente paralela à “história oficial”, isso é a história das obras e empreendimentos das duas primeiras castas (reis, heróis, santos, aristocratas, etc.), como se estivéssemos lidando com uma civilização específica incorporada na “civilização oficial”. Não sabemos quase nada sobre esse mundo, já que sempre celebramos apenas os feitos das castas superiores. Foi apenas nos séculos XVIII e XIX que, se passou a compilar o folclore desse mundo campesino, em um renascimento da tradição nacional que reagia contra o Medievo e o feudalismo. E aí descobrimos que havia uma impensa quantidade de narrativas e elementos sobreviventes da tradição europeia arcaica, temas que no Medievo estava totalmente fora da esfera de interesses das castas eruditas.
Na Europa Oriental, até o século XIX, a colheira era atividade fundamentalmente feminina. Não com grandes ferramentas, mas com ferramentas pequenas como as foices. Os homens cortavam apenas os vegetais destinados à alimentação do gado. Me recordo também que na Sérvia havia ritos especiais para quando não havia chuva. As mulheres se reuniam fora das aldeias e punham em prática certos ritos especiais para que houvesse chuva. Há ainda muitas outras tradições vinculadas a esse aspecto matriarcal.
Podemos definir o universo agrícola e camponês como o ponto de encontro de dois horizontes existenciais, dois Dasein, ambos pertencentes à nossa civilização européia: o horizonte do Logos de Apolo, representado pela ideologia trifuncional oficial, e o horizonte do Logos de Cibele, uma ideologia paralela, que conota a tradição de matriarcal e está presente na parte escura, no subconsciente da sociedade agrícola e sedentária. Nossa sociedade é baseada neste momento de Noomaquia Mas a Noomaquia é um conflito contínuo; em outras palavras, ele continua hoje. O Logos de Cibele continua existindo dentro de nossa civilização. Não podemos acreditar na vitória de um Logos de uma vez por todas. Se o Logos de Apolo enfraquece, significa que outro Logos está se tornando mais forte. Assim, se o patriarcado começar a se dissolver – é o caso da modernidade ocidental e, em particular, da pós-modernidade – outra tendência contrária começará a aparecer, a tornar-se cada vez mais explícita.
Portanto, não devemos dar como garantida a vitória dos deuses sobre os titãs. Há mais de um exemplo no passado que nos mostra como em uma sociedade indo-européia os titãs podem prevalecer. É o caso do frígios, um povo indo-europeu anatólio que continuou e renovou o culto à Grande Mãe pré-indo-europeia. Para os frígios, que eram indo-europeus, Cibele era a maior das divindades. Isso é importante porque mostra que mesmo em um contexto indo-europeu, o poder da Grande Mãe pode ser tão forte a ponto de transformar e reinterpretar a ideologia indo-europeia de maneira radicalmente diferente. Os titãs podem vencer nesse contexto das sociedades indo-europeias mistas. O que foi dito dos frígios vale também para os lícios, povos continuadores da tradição hitita. Os lícios e os lídios, povos anatólios, também eram matriarcais, praticando o mesmo culto à Grande Mãe que os frígios. Então conhecemos casos nos quais a Grande Mãe vence.
Mesmo na Grécia, temos casos em que a Grande Mãe vence. Bachofen relata muitos exemplos desse tipo. Os gregos jônios e eólios também foram, até certo ponto, sobrepujados por essa tradição pré-helênica. Quando os dórios, a última das quatro tribos helênicas que invadiram a Grécia, chegaram ao Peloponeso, eles eram integralmente androcráticos e turanianos, mas as tribos helênicas anteriores foram mais ou menos assimilados nas civilizações minoica e micênica, onde vemos muros ao redor da cidade, característica turânica, mas com templos à Grande Mãe no centro, como nas antigas cidades micênicas. Houve, portanto, uma mistura dos dois horizontes na qual a Grande Mãe obteve finalmente uma espécie de “vingança”, que durou substancialmente até a descida dos dórios, tribo portadora de uma série de elementos decisivos que caracterizavam o patriarcado e inclinados a não negociar com o Logos de Cibele. A invasão dória vinda dos Bálcãs para o Sul se deu 1200 anos antes de Cristo, mas as primeiras ondas de invasores helênicos são muito anteriores.
A Noomaquia contínua que caracteriza nossa civilização constitui de fato um conflito semântico, que, portanto, não se manifesta simplesmente na substituição de uma divindade masculina por uma feminina ou de uma divindade celeste por uma terrena. A questão é muito mais complexa. É uma “guerra de interpretação” relacionada às mesmas figuras, aos mesmos símbolos, aos mesmos nomes. Por exemplo, ao lado do poderoso Zeus, grande Deus, puramente patriarcal, há o Zeus cretense que é completamente matriarcal. É o mesmo deus, mas reinterpretado de uma maneira diferente, em um sentido matriarcal. Outro exemplo, de sentido oposto, é fornecido pela deusa Atena, uma divindade com características femininas, mas de tipo viril, sendo interpretada no sentido turânico, a partir de uma espécie de aniliginia: uma deusa virgem, pura, belicosa, corajosa e sábia, sem vínculos com a maternidade e o poder da Terra, sem relações ctônicas ou com a serpente. Assim, um elemento do horizonte de Cibele pode ser reinterpretado no signo do Logos de Apolo, mas o oposto também pode acontecer, como no caso do Zeus de Creta. Esses exemplos são retirados da mitologia, mas esse discurso pode ser estendido a qualquer outra área. Há uma guerra de interpretação que é inerente a todas as sociedades europeias sedentárias, um processo conflitual contínuo devido à presença em nossa cultura do Logos de Cibele, da qual as tribos turânicas que viviam no espaço nômade da Eurásia eram livres.
Com a sedentarização, uma nova concepção de mulher também faz sua entrada. Ao lado da mulher turânica presente no contexto da aniliginia – a mulher como amiga e guerreira, substancialmente equivalente ao homem -, acompanha a figura de uma mulher completamente diferente: uma mulher terrestre, não masculina, mas puramente feminina, uma espécie de berço, considerada como um tipo de posse, a ser apropriada, a ser conquistada, subjugada e controlada; em outras palavras, uma forma de propriedade ética e legalmente reconhecida. A transição do estilo de vida nômade para o sedentário marca, portanto, a bifurcação na imagem da mulher. Uma divisão que se reflete em muitas instituições da sociedade, incluindo o reino dos deuses: nas deidades sedentárias da sociedade indo-européia, de fato, podemos reter características turânicas, pensemos em Atena, Diana ou Ártemis – ou ver traços cibelinos, como no caso de Deméter, Rea e, acima de tudo, Gaia, cujo nome designa um tipo de mulher matriarcal. De modo geral, no que concerne essa dualidade, as divindades ctônicas foram integradas na terceira função nessa fase sedentária da cultura indo-europeia.
Conclusão
A análise noológica do sedentarismo dos indo-europeus, dos quais nesta lição abordamos os pontos mais importantes, fornece-nos os elementos para entender a estrutura existencial de todas as sociedades indo-europeias. Agora sabemos que existem dois horizontes existenciais sobrepostos um ao outro, e é apenas a partir deste resultado que é possível aprofundar o estudo aprofundado de cada sociedade indo-européia específica – europeia ocidental, europeia oriental, iraniana ou indiana. Tenho dedicado a cada uma dessas sociedades – ao Logos francês, germânico, latim, grego, inglês, iraniano, indiano – diferentes volumes do projeto Noomaquia, aplicando o conceito de “dois horizontes” para testar como essa hermenêutica opera, essa interpretação nos casos específicos representados por cada uma dessas culturas e como essa superposição de dois níveis afeta o conteúdo e a semântica de cada um desses povos. Posso afirmar com absoluta certeza que em todos os lugares podemos identificar os dois horizontes existenciais, suas interações e aspectos em que prevalece um horizonte mais do que o outro em uma variedade de contextos – na mitologia, na religião, na ciência, na visão do mundo em si – já que o Logos envolve e influencia tudo.
No final desta lição, gostaria de mencionar brevemente qual será o assunto de nossa discussão na próxima lição. Podemos presumir, se nos lembrarmos do que dissemos na primeira lição, que o Logos dionisíaco se manifesta na mistura dos dois Logos apolíneo e cibelino. De fato, o momento em que Apolo e Cibele se encontram e conflitam, constitui o momento de Noomaquia em que Dioniso aparece, que representa precisamente a interseção de dois horizontes, o Logos vertical de Apolo em sua versão pura com todos seu conteúdo turânico e o Logos ctônico de Cibele. A próxima lição será, portanto, dedicada ao Logos de Dioniso e às culturas baseadas nele.
Notas[1] Johann Jakob Bachofen, Das Mutterrecht, Verlag Krais und Hoffmann, 1861. Trad. italiana: Il Matriarcato, Einaudi, 1988.
[2] Evel Gasparini, Il matriarcato slavo. Antropologia culturale dei Protoslavi, Vol. 1, 2 e 3, Firenze University Press, 2010. http://www.larici.it/culturadellest/storia/allegati/gasparini/index.html