Da Geografia Sagrada à Geopolítica
Da Geografia Sagrada à Geopolítica
Geopolítica como Ciência "Intermediária"
Conceitos geopolíticos se tornaram os principais fatores da política moderna há muito tempo atrás. Eles são construídos sobre princípios gerais que permitem analisar facilmente a situação de qualquer país e região particular.
A geopolítica em sua forma atual é indubitavelmente uma ciência mundana, "profana", secularizada. Mas talvez, entre todas as ciências modernas, ela haja salvo em si mesma a maior conexão com a Tradição e as ciências tradicionais. René Guénon disse que a química moderna é o resultado da dessacralização de uma ciência tradicional - a alquimia, como a física moderna é da magia. Exatamente do mesmo jeito se poderia dizer que a geopolítica moderna é o produto da laicização e dessacralização de outra ciência tradicional - a geografia sagrada. Mas já que a geopolítica ocupa um lugar especial entre as ciências modernas, e é às vezes categorizada como "pseudo-ciência", sua profanação não é tão realizada e irreversível, como no caso da química ou da física. A conexão com a geografia sagrada aqui é um tanto quanto distintamente visível. Portanto é possível dizer que a geopolítica se encontra em um lugar intermediário entre a ciência tradicional (geografia sagrada) e a ciência profana.
Terra e Mar
Os dois conceitos primários da geopolítica são terra e mar. Apenas esses dois elementos - Terra e Água - se encontram nas raízes da representação humana qualitativa do espaço terreno. Através da experiência da terra e do mar, da terra e da água, o homem entra em contato com os aspectos fundamentais de sua existência. Terra é estabilidade, gravidade, fixidez, espaço enquanto tal. Água é mobilizada, suavidade, dinamismo, tempo.
Esses dois elementos são em essência a demonstração mais óbvia da natureza material do mundo. Eles se situam fora do homem: tudo é pesado e fluido. Eles estão também dentro dele: corpo e sangue. (O mesmo ocorre também ao nível celular).
A universalidade da experiência da terra e da água gera o conceito tradicional de Firmamento, já que a presença das Águas Superiores (a fonte da chuva) no céu também implica a presença de um elemento simétrico e necessário - terra, a abóbada celestial. De qualquer maneira, Terra, Mar, Oceano são em essência as categorias principais da existência terrena, e para a humanidade é impossível não ver nelas alguns atributos básicos do universo. Como os dois termos básicos da geopolítica, eles preservam sua significância tanto para civilizações de um tipo tradicional e estados, povos e blocos ideológicos exclusivamente modernos. Ao nível do fenômeno geopolítico global, Terra e Mar geraram os termos: talassocracia e telurocracia, ou seja, "poder por meio do mar" e "poder por meio da terra".
A força de qualquer estado e qualquer império se baseia no desenvolvimento preferencial de uma dessas categorias. Impérios são ou "talassocráticos" ou "telurocráticos". O primeiro implica a existência de um país-mãe e colônias, o segundo de uma capital e províncias em "terra comum". No caso da "talassocracia" seu território não é unificado em um espaço terreno - o que cria um elemento de descontinuidade. O mar - aqui se encontra tanto a força como a fraqueza do "poder talassocrático". A "telurocracia", vice-versa, possui a qualidade de continuidade territorial.
Mas a lógica geográfica e cosmológica complicaria de imediato o esquema aparentemente simples dessa divisão: o par "terra-mar", por superimposição recíproca de seus elementos, dá origem às ideias de "terra marítima" e "água terrena". A terra marítima é a ilha, ou seja, a base do império marítimo, o pólo da talassocracia. A água terrena ou água dentro da terra são os rios, que predeterminam o desenvolvimento de impérios terrestres. Exatamente sobre o rio se localiza a cidade, que é a capital, o pólo da telurocracia. Essa simetria é simbólica, econômica e geográfica ao mesmo tempo. É importante notar que o status de Ilha e Continente é definido não tanto com base em sua magnitude física, do que com base na consciência peculiar típica da população. Assim a geopolítica americana possui um caráter insular, à despeito do tamanho da América do Norte, enquanto o Japan insular representa geopoliticamente um exemplo de mentalidade continental, etc.
Um outro detalhe é relevante: a talassocracia histórica está ligada ao Ocidente e ao Oceano Atlântico, enquanto a telurocracia ao Oriente e ao continente eurasiano. (O exemplo supracitado do Japão é explicado, assim, pelo efeito "atrativo" mais forte da Eurásia).
Talassocracia e Atlantismo se tornaram sinônimos muito antes da expansão colonial da Grã-Bretanha ou das conquistas hispano-portuguesas. Já desde o início das ondas migratórias marítimas, os povos do Ocidente e suas culturas começaram seu movimento para o leste desde os centros localizados no Atlântico. O Mediterrâneo também emergiu de Gibraltar para o Oriente Próximo, ao invés do outro jeito. E ao contrário, escavações na Sibéria Oriental e na Mongólia provam que exatamente aqui estiveram os centros mais antigos de civilização - isto é, as terras centrais do continente foram o berço da humanidade eurasiana.
Simbolismo da Paisagem
Além dessas duas categorias globais - Terra e Mar - a geopolítica opera também com definições mais particulares. Entre as realidades talassocráticas, há uma diferenciação entre formações marinhas e oceânicas. Assim, por exemplo, a civilização marinha do Mar Negro ou do Mar Mediterrâneo são qualitativamente diferentes da civilização dos oceanos, ou seja, potências insulares e povos habitando nas costas do oceano aberto. Divisões mais particulares existem também entre civilizações de rios e lagos, ligadas a continentes.
A telurocracia também tem suas formas particulares. Assim é possível distinguir uma civilização da Estepe e uma civilização da Floresta, uma civilização da Montanha e uma civilização da Planície, uma civilização do Deserto e uma civilização do Gelo. As variedades da paisagem na geografia sagrada são entendidas como complexos simbólicos ligados à especificidade do estado, ideologia religiosa e ética dos diferentes povos. E mesmo nesse caso, quando lidamos com uma religião ecumênica universalista, sua corporificação concreta em tal ou qual povo, raça ou estado será identicamente sujeita à adaptação segundo o contexto local sacro-geográfico.
Deserto e estepes representam o microcosmo geopolítico dos nômades. Precisamente em desertos e estepes a tendência telurocrática alcança seu ápice, na medida em que o fator "água" aqui é minimamente presente. Os impérios do Deserto e da Estepe devem logicamente ser a ponta-de-lança geopolítica da telurocracia.
Como um exemplo do império da Estepe, se pode considerar o império de Gengis Khan, enquanto um exemplo típico do império do Deserte é o Califado árabe, surgido sob influência direta dos nômades.
Montanhas e as civilizações das montanhas mais comumente representam o arcaico, o fragmentário. Países montanhosos não só não são fontes de expansão; ao contrário, eles são concentradamente as vítimas da expansão geopolítica de outras forças telurocráticas. Nenhum império jamais teve seu centro em regiões montanhosas. Daí o motivo tão repetido da geografia sagrada: "montanhas são povoadas por demônios". Por outro lado, a ideia da conservação dos resíduos de raças e civilizações antigas nas montanhas é demonstrada no fato de que precisamente nas montanhas os centros sagrados da tradição são situados. É até mesmo possível dizer que nas telurocracias uma montanha corresponde a algum poder espiritual.
A combinação lógica de ambos conceitos - montanha como imagem hierática e planície como imagem real - se tornaram o simbolismo da colina, ou seja, uma altura pequena ou mediana. A colina é um símbolo de poder imperial emergindo por sobre o nível secular da estepe, mas não alcançando o limite do poder supremo (como ele alcança no caso das montanhas). Uma colina é um local de habitação para um rei, um conde, um imperador, mas não para o sacerdote. Todas as capitais dos grandes impérios telurocráticos são situados sobre uma colina ou colinas (muitas vezes sobre sete colinas - o número dos planetas; ou sobre cinco - o número de elementos, incluindo o éter; e daí em diante).
A floresta na geografia sagrada está próxima às montanhas em um sentido definido. O simbolismo da árvore está relacionado ao simbolismo da montanha (ambas designam o axis mundi). Portanto em telurocracias a floresta também desempenha uma função periférica - ela, também, é o "local dos sacerdotes" (druidas, magos, eremitas), mas também ao mesmo tempo o "local dos demônios", ou seja, resíduos arcaicos de um passado desaparecido. Tampouco pode a zona florestal ser o centro de um império terrestre.
A tundra representa o análogo nórdico da estepe e do deserto, ainda que o clima frio o torne bem menos significativo desde um ponto de vista geopolítico. Essa "perifericidade" alcança seu apogeu com gelos, que, similarmente às montanhas, são zonas profundamente arcaicas. É indicativo que a tradição xamânica esquimó implica partir sozinho entre os gelos, onde para o futuro xamã o mundo além está aberto. Assim, os gelos são uma zona hierática, o limite de um mundo diferente.
Desde essas características primárias e mais gerais do mapa geopolítico, é possível definir as várias regiões do planeta segundo sua qualidade sagrada. Esse método também pode ser aplicado às características locais da paisagem em um nível de países singulares ou mesmo localidades singulares. É também possível traçar a similaridade de ideologias e tradições dos povos mais (aparentemente) diferentes, no evento de que a paisagem nativa seja a mesma.
Oriente e Ocidente na Geografia Sagrada
Pontos Cardeais no contexto da geografia sagrada possuem uma característica qualitativa especial. Nas várias tradições e nos vários períodos dessas tradições, a imagem da geografia sagrada pode variar segundo as fases cíclicas de desenvolvimento da tradição dada. Assim a função simbólica de Pontos Cardeais muitas vezes varia também. Não entrando em detalhes profundos, é possível formular a mais universal lei da geografia sagrada em relação a Oriente e Ocidente.
A geografia sagrada sobre a base do "simbolismo espacial" tradicionalmente considera o Oriente como "a terra do Espírito", a terra paradisíaca, a terra de uma completude, abundância, a "terra nativa" sagrada em seu tipo mais pleno e perfeito. Em particular, essa ideia é espelhada no texto bíblico, onde a disposição oriental do "Éden" é tratada. Precisamente tal compreensão é peculiar também para outras tradições abraâmicas (Islã e Judaísmo), e também para muitas tradições não-abraâmicas - chinesa, hindu e iraniana. "O Oriente é a mansão dos deuses", afirma a fórmula sagrada dos egípcios antigos, e a própria palavra "oriente" ("neter" em egípcio) significava ao mesmo tempo "deus". Desde o ponto de vista do simbolismo natural, o Oriente é o lugar em que ascende, "vos-tekeat" [em russo] o sol, Luz do Mundo, símbolo material da Divindade e Espírito.
O Ocidente possui o significado simbólico oposto. É o "país da morte", o "mundo sem vida", o "país verde" (como os egípcios chamavam). Ocidente é "o império do exílio", "o abismo dos rejeitados", segundo a expressão dos místicos islâmicos. Ocidente é "anti-oriente", o país de "zakata" [em russo], decadência, degradação, transição do manifesto para o não-manifesto, da vida para a morte, da completude para a necessidade, etc. Ocidente [Zapad, em russo] é o lugar em que o sol cai, em que ele "afunda" [za-padaet].
Segundo à lógica dada do simbolismo cósmico natural, as tradições antigas organizaram seu "espaço sagrado", fundaram seus centros de culto, locais de enterro, templos e edifícios, e interpretaram as características natural e "civilizacional" de territórios geográficos, culturais e políticos do planeta. Desse jeito, a própria estrutura de migrações, guerras, campanhas, ondas demográficas, construção de impérios, etc. foi definida pela lógica original e pragmática da geografia sagrada. Ao longo do eixo oriente-ocidente foram dispostos povos e civilizações, possuindo características hierárquicas - mais próximas ao Oriente estavam aquelas mais próximas à riqueza espiritual, sacral, à Tradição. Mais próximas ao Ocidente, as de um Espírito mais decaído, degradado e agonizante.
Obviamente essa lógica não era absoluta, mas ao mesmo tempo ela não era nem menor, nem relativa - como se considera hoje erroneamente por muitos estudiosos "profanos" de antigas religiões e tradições. Na verdade, a lógica sagrada e o simbolismo cósmico seguinte foram realizados, compreendidos e praticados bem mais conscientemente pelos povos antigos, do que se concorda em estimar hoje. E mesmo em nosso mundo anti-sagrado, em um nível "inconsciente" quase sempre arquétipos da geografia sagrada estão preservados em sua integridade, e são despertos nos momentos mais relevantes e críticos de cataclismos sociais.
Assim a geografia sagrada afirma univocamente a lei do "espaço qualitativo", na qual o Oriente representa o "positivo ontológico" simbólico, e o Ocidente o "negativo ontológico". Segundo a tradição chinesa, o Oriente é Yang, masculino, claro, princípio solar, e o Ocidente é Yin, o feminino, escuro, princípio lunar.
Oriente e Ocidente na Geopolítica Moderna
Nós observaremos como essa lógica sacro-geográfica é espelhada na geopolítica, que, sendo uma ciência exclusivamente moderna, foca apenas na situação fática, deixando de lado os princípios mais sagrados.
A geopolítica em suas formulações originais por Ratzel, Kjellen e Mackinder (e depois por Haushofer e os eurasistas russos) se absteve de conectar as características dos tipos diferentes de civilizações e estados a sua disposição geográfica. Os geopolíticos contemplaram o fato de uma diferença fundamental entre potências "insular" e "continental", entre civilização "ocidental", "progressiva" e formas culturais "orientais", "despóticas" e "arcaicas". Já que em geral a questão sobre o Espírito em sua compreensão metafísica e sagrada jamais surgiu na ciência moderna, os geopolíticos a deixaram de lado, preferindo avaliar a situação em termos mais modernos, diferentes, ao invés de através dos conceitos de "sagrado" e "profano", "tradicional" e "antitradicional", etc.
Geopolíticos estabeleceram as principais diferenças entre desenvolvimento político, cultural e industrial do Oriente e Ocidente nos últimos séculos. A imagem final é a seguinte. O Ocidente é o centro do desenvolvimento "material" e "tecnológico". Ao nível cultural-ideológico, lá tendências "liberal-democráticas", individualistas e humanistas são dominantes. Ao nível econômico, a prioridade é dada ao comércio e à modernização técnica. No Ocidente teorias sobre "progresso", "evolução", desenvolvimento progressivo da história" pela primeira vez apareceram, completamente alheias ao mundo tradicional oriental (e também àqueles períodos da história ocidental, em que uma rigorosa tradição sagrada existia ali também - como foi, em particular, na Idade Média). Coerção a um nível social no Ocidente adquiriu apenas um caráter econômico, e a Lei da Ideia e da Força gradualmente foi substituída pela Lei do Dinheiro. Gradualmente uma "ideologia ocidental" peculiar foi cunhada na fórmula universal de "ideologia dos direitos humanos", que se tornou um princípio dominante nas regiões mais ocidentais do planeta - América do Norte, e em primeiro lugar os EUA. Em um nível industrial, a essa ideologia correspondia a ideia de "países desenvolvidos, e em um nível econômico o conceito de 'livre mercado, de liberalismo econômico'". Todo o agregado dessas características, com a adição da integração puramente militar e estratégia dos diferentes setores da civilização ocidental, é definida hoje pelo conceito de "atlantismo". No século passado os geopolíticos falaram sobre um tipo "anglo-saxão de civilização" ou sobre a "democracia capitalista burguesa". Nesse tipo "atlantista" a fórmula do "Ocidente geopolítico" encontrou sua corporificação mais pura.
O Oriente geopolítico representa em si mesmo a oposição direta ao Ocidente geopolítico. Ao invés de modernização econômica, aqui (nos "países menos desenvolvidos") modos de produção arcaicos e tradicionais de tipo corporativo, manufatureiro prevalecem. Ao invés de coerção econômica, mais usualmente o estado usa coerção "moral" ou simplesmente física (Lei da Ideia e Lei da Força). Ao invés de "democracia" e "direitos humanos" o Oriente gravita ao redor do totalitarismo, do socialismo e do autoritarismo, ou seja, ao redor de vários tipos de regimes sociais, cuja única característica comum é que o centro de seus sistemas não é o "indivíduo", o "homem" com seus "direitos" e seus "valores individuais" peculiares, mas algo supra-individual, supra-humano - seja "sociedade", "nação", "povo", "ideia", weltanschauung", "religião", "culto do líder", etc. O Oriente opôs à democracia liberal ocidental os mais variados tipos de sociedades não-liberais e não-individualistas - de monarquia autoritária a teocracia ou socialismo. Ademais, desde um ponto de vista geopolítico, tipológico puro, a especificidade política desse ou daquele regime foi secundário em comparação com a divisão qualitativa entre a ordem "ocidental" (= "individualista-mercantil") e a ordem "oriental" (= "supra-individualista-baseado em força"). Formas representativas de tal civilização anti-ocidental foram a URSS, a China comunista, o Japão até 1945 ou o Irã de Khomeini.
É curioso notar que Rudolf Kjellen, o primeiro autor a usar o termo "geopolítica", ilustrou a diferença entre Ocidente e Oriente dessa maneira. "Uma típica frase de estimação dos americanos, - escreveu Kjellen - é 'siga em frente', que literalmente significa 'avante'. Nela o otimismo geopolítico interior e natural e o "progressismo" da civilização americana, sendo a forma extrema do padrão ocidental, é espelhada. Russos usualmente repetem a palavra 'nechego' [nada]. Nela se expressam 'pessimismo', 'contemplação', 'fatalismo' e 'adesão à tradição', todas características peculiares do Oriente".
Se nós agora retornarmos ao paradigma da geografia sagrada, nós veremos a contradição direta entre as prioridades da geopolítica moderna (tais conceitos como "progresso", "liberalismo", "direitos humanos", "ordem mercantil", etc., são hoje termos positivos para a maioria das pessoas) e as prioridades da geografia sagrada, avaliando os vários tipos de civilizações desde um ponto de vista completamente oposto (conceitos como "espírito", "contemplação", "resignação à força ou ideia supra-humana", "ideocracia", etc. em civilizações sagradas eram exclusivamente positivas, e assim permanecem até agora para os povos orientais ao nível do "inconsciente coletivo". Assim a geopolítica moderna (exceto para os eurasistas russos, seguidores alemães de Haushofer, fundamentalistas islâmicos, etc.) avaliam a imagem do mundo desde uma perspectiva oposta em relação à geografia sagrada tradicional. Mas assim ambas ciências convergem na descrição de leis fundamentais da imagem geográfica de civilizações.
Norte Sagrado e Sul Sagrado
Além de um determinismo sacro-geográfico em um eixo Oriente-Ocidente, um problema extremamente relevante é representado pelo outro eixo de orientação, vertical, o eixo Norte-Sul. Aqui, bem como em todos os casos remanescentes, os princípios da geografia sagrada, o simbolismo dos pontos cardeais e os continentes relacionados, possui seu análogo direto na imagem geopolítica do mundo, que ou é naturalmente construída no curso do processo histórico, ou é conscientemente e artificialmente formada como o resultado de ações propositadas dos líderes de tal ou qual formações geopolíticas. Desde o ponto de vista da "tradição integral", a diferença entre "artificial" e "natural" é geralmente bem relativa, já que a Tradição jamaias conheceu nada similar ao dualismo cartesiano ou kantiano, separando estritamente o "subjetivo" do "objetivo" ("fenomenal" e "noumenal"). Portanto o determinismo sagrado de Norte ou Sul não é somente um fator físico, natural, climático-paisagístico (ou seja, algo "objetivo") ou somente "ideia", "conceito", gerado pelas mentes de certos indivíduos (ou seja, algo "subjetivo"), mas algo de um terceiro tipo, excedendo tanto os pólos objetivo como subjetivo. Se poderia dizer que o Norte sagrado, o arquétipo do Norte, se dividindo na história na paisagem natural nórdica, por um lado, e na ideia de Norte, "nordismo", por outro lado.
A mais antiga e original camada de Tradição afirma univocamente a primazia do Norte sobre o Sul. O simbolismo do Norte se relaciona a uma Fonte, a um paraíso nórdico original, desde onde toda a civilização humana se origina. Textos irânicos e zoroastrianos antigos falam sobre o país nórdico de "Aryiana Vaeijao" e sua capital "Vara", de onde os antigos arianos foram expulsos pela glaciação, que lhes foi enviada por Ahriman, espírito do Mal e opositor do claro Ormudz. Os antigos Vedas também falam sobre o país nórdico como o lar ancestral do hindu, sobre uma Sveta-Dipa, Terra Branca jazendo no longínquo norte.
Os antigos gregos falavam sobre Hiperbórea, a ilha nórdica com sua capital Thule. Essa terra era considerada como a pátria original do deus luminoso Apolo. E em muitas outras tradições é possível detectar traços antiquíssimos, muitas vezes esquecidos e fragmentários, de um simbolismo nórdico. A ideia básica tradicionalmente ligada ao Norte é a ideia de Centro, Pólo Imóvel, ponto de Eternidade ao redor do qual gira o ciclo não só do espaço, mas também do tempo. O Norte é a terra para a qual o Sol jamais vai mesmo à noite, um espaço de luz eterna. Qualquer tradição sagrada honra o Centro, o Meio, o ponto em que contrastes se aplacam, o lugar simbólico não sujeito às leis da entropia cósmica. Esse Centro, cujo símbolo é a Suástica (enfatizando tanto imobilidade e constância do Centro, e mobilidade e mutabilidade da periferia), recebeu um nome diferente segundo cada tradição, mas ele era sempre direta ou indiretamente ligado ao simbolismo do Norte. Portanto é possível dizer que todas as tradições sagradas são em essência a projeção de uma única Tradição Nórdica Primordial adaptada a cada distinta condição histórica. O Norte é o Ponto Cardeal escolhido pelo Logos primevo de modo a se revelar na História, e cada uma de suas manifestações subsequentes somente restaurou aquele simbolismo polar-paradisíaco primevo.
A geografia sagrada correlaciona o Norte a espírito, luz, pureza, completude, unidade, eternidade.
O sul simboliza algo diretamente oposto - materialidade, escuridão, mistura, privação, pluralidade, imersão na corrente do tempo e devir. Mesmo desde o ponto de vista natural, em áreas polares há um longo Dia semi-anual e uma longa Noite semi-anual. É o Dia e Noite dos deuses e heróis, dos anjos. Mesmo tradições decaídas lembravam esse Norte Cardeal, sacral, espiritual, sobrenatural, incluindo as regiões nórdicas como o lugar de habitação de "espíritos" e "forças do além". No sul o Dia e Noite dos deuses estão fragmentados em um conjunto de dias humanos, o simbolismo original de Hiperbórea está perdido, e suas memórias se tornam partes da "cultura", da "lenda". O sul geralmente corresponde à cultura, ou seja, àquela esfera da atividade humana em que o Invisível e o Puramente Espiritual adquirem contornos materiais, endurecidos, visíveis. O Sul é o reino da substância, da vida, da biologia e dos instintos. O Sul corrompe a pureza nórdica da Tradição, mas preserva seus traços em características materializadas.
O par Norte-Sul na geografia sagrada não é reduzido a uma oposição abstrata de Bem e Mal. Ele é ao invés a oposição de Ideia Espiritual a sua corporificação material, embrutecida. Em casos normais, como a primazia do Norte é reconhecida pelo Sul, entre esses lados existe uma relação harmoniosa - o Norte "espiritualiza" o Sul, os mensageiros nórdicos dão aos sulistas a Tradição, depositam as fundações de civilizações sagradas. Se o Sul falha em reconhecer a primazia do Norte, a oposição sagrada, a "guerra de continentes" começa, e desde o ponto de vista da Tradição o Sul é responsável por esse conflito ao quebrar as regras sagradas. No Ramayana, por exemplo, a ilha sulista Lanka é considerada como um lar de demônios que roubaram a esposa de Rama, Sita, e declararam guerra ao Norte continental com sua capital em Ayodjya.
Assim é importante marcar que na geografia sagrada o eixo Norte-Sul é mais relevante que o eixo Oriente-Ocidente. Mas sendo o mais relevante, ele corresponde às fases mais antigas da história cíclica. A grande guerra de Norte e Sul, Hiperbórea e Gondwana (antigo paleocontinente do Sul) se remete a tempos "antediluvianos". Nas últimas fases do ciclo ela se torna mais oculta, velada. Os paleocontinentes de Norte e Sul eles próprios desaparecem. O signo de testemunho de oposição é passado a Oriente e Ocidente.
A transição do eixo vertical Norte-Sul para o eixo horizontal Oriente-Ocidente, típico das últimas fases do ciclo, não obstante salva a lógica e a conexão simbólica entre esses dois pares sacro-geográficos. O par Norte-Sul (ou seja, Espírito-Matéria, Eternidade-Tempo) é projetado sobre o par Oriente-Ocidente (ou seja, Tradição e Profanidade, Origem e Decadência). O Oriente é a projeção horizontal descendente do Norte. O Ocidente - a projeção horizontal ascendente do Sul. Dessa transferência de significados sagrados se pode obter facilmente a estrutura da visão continental peculiar à Tradição.
O Povo do Norte
O Norte sagrado define um tipo humano especial, que pode possuir uma corporificação biológica, racial, mas que pode também não possuir. A substância do "nordismo" consiste na capacidade do homem de erguer cada objeto do mundo físico, material, a seu arquétipo, a sua Ideia. Essa qualidade não é um simples desenvolvimento de origem racional. Vice-versa, o "intelecto puro" cartesiano e kantiano por sua natureza não é capaz de superar a frágil fronteira entre "fenômeno" e "númeno" - mas exatamente essa habilidade se encontra nas bases do pensamento "nórdico". O homem do Norte não é simplesmente branco, "ariano" ou indoeuropeu por seu sangue, linguagem e cultura. O homem do Norte é um tipo particular de ser possuindo uma intuição direta do Sagrado. Para ele o cosmos é uma textura de símbolos, cada um deles evocado desde o segredo pelo olho do Primeiro Princípio Espiritual. O homem do Norte é o "homem solar", Sonnenmensch, não absorvendo energia, como fazem os buracos negros, mas delineando-a, projetando luz, força e sabedoria a partir de seu fluxo espiritual de criação.
A civilização nórdica pura desapareceu com os antigos Hiperbóreos, mas seus mensageiros assentaram as bases de todas as tradições atuais. Essa "raça" nórdica de Mestres esteve nas origens da religião e cultura dos povos de todos os continentes e cores de pele. Traços de um culto hiperbóreo podem ser encontrados entre os índios da América do Norte e entre os antigos eslavos, entre os fundadores da civilização chinesa e entre os nativos do Pacífico, entre os loiros alemães e os xamãs negros da África ocidental, entre os aztecas de pele-vermelha e os mongóis de maças do rosto elevadas. Não há povo no planeta, que não possua um mito sobre o "homem solar", o Sonnenmensch. A verdadeira espiritualidade, a Mente supra-racional, o Logos divino, a capacidade de ver através do mundo sua Alma sagrada - essas são as qualidades definidoras do Norte. Onde quer que haja Pureza Sagrada e Sabedoria, lá invisivelmente está o Norte - onde quer que seja o ponto no tempo ou espaço em que estejamos.
O Povo do Sul
O homem do Sul, o tipo gondvânico, é diretamente oposto ao tipo "nórdico". O homem do Sul vive em um círculo de efeitos, de manifestações secundárias; ele habita no cosmos, que ele venera mas não compreende. Ele adora a exterioridade, mas não a interioridade. Ele cuidadosamente salva traços de espiritualidade, sua corporificação no ambiente material, mas não é capaz de proceder de simbolizar ao simbolizado. O homem do Sul vive por paixões e impulsos, ele coloca o psíquico acima do espiritual (que ele simplesmente não conhece) e adora a Vida como autoridade superior. O culto da Grande Mãe, da matéria gerando a variedade de formas, é típica do homem do Sul. A civilização do Sul é uma civilização da Lua recebendo a luz do Sol (Norte), preservando e difundindo-a por algum tempo, mas periodicamente perdendo contato com ela (lua nova). O homem do Sul é um Mondmensch.
Quando o povo do Sul fica em harmonia com o povo do Norte, ou seja, reconhece sua autoridade e sua superioridade tipológica (não racial!), a harmonia impera entre as civilizações. Quando eles reivindicam sua supremacia por causa de sua relação arquetípica com a realidade, emerge um tipo cultural distorcido, que pode ser globalmente definido pela adoração de ídolos, fetichismo ou paganismo (no sentido negativo, pejorativo desse termo).
Como no caso de paleocontinentes, tipos nórdicos ou sulistas puros existiram apenas em termos remotos antigos. O povo do Norte e o povo do Sul se opuseram um ao outro nas origens. Posteriormente todos os povos do Norte penetraram nas terras sulistas, fundando às vezes expressões claras da civilização "nórdica" - Irã e Índia antigos. Por outro lado, aqueles do Sul às vezes foram muito ao norte, portando seu tipo cultural - fínicos, esquimós, chuckchis, etc. Gradualmente a clareza original do panorama sacro-geográfico se tornou turvo. Mas à despeito de tudo o dualismo tipológico do "povo do Norte" e do "povo do Sul" foi preservado em todos os tempos e épocas - mas não tanto quanto como um conflito externo de duas civilizações miscelâneas, como um conflito interno dentro do esquema da mesma civilização. O tipo do Norte e o tipo do Sul, desde algum momento na história sagrada, se opõem um ao outro em todo lugar, independentemente do lugar concreto do planeta.
Norte e Sul no Oriente e no Ocidente
O tipo do povo do Norte poderia ser projetado no Sul, no Oriente e no Ocidente. No Sul, a Luz do Norte gerou grandes civilizações metafísicas como a indiana, iraniana ou chinesa, que na situação do Sul "conservador" por um longo tempo salvou a Revelação, confiada a ela. Porém, a simplicidade e clareza do simbolismo nórdico se transformou aqui em um emaranhado complexo e miscelâneo de doutrinas sagradas, sacramentos e ritos. Porém, quanto mais se dirige ao Sul, mais fracos são os traços do Norte. E entre os habitantes das ilhas do Pacífico e do sul da África, motivos "nórdicos" na mitologia e nos sacramentos estão preservados em formas extremamente fragmentadas, rudimentares e mesmo distorcidas.
No Oriente, o Norte é mostrado como a sociedade tradicional clássica fundada sobre a superioridade unívoca do supra-individual sobre o individual, onde o "humano" e o "racional" são apagados perante o Princípio supra-humano e supra-racional. Se o Sul dá à civilização um caráter de "estabilidade", o Oriente define sua sacralidade e autenticidade, o maior garantidor do que é a Luz do Norte.
No Ocidente, o Norte se expressou nas sociedades heróicas, onde tal tendência, peculiar ao Ocidente, à fragmentação, individualização e racionalização ultrapassou a si mesma, e o indivíduo, se tornando o Herói, emergiu do esquema estreito da personalidade "humana, demasiado humana". O Norte no Ocidente é personificado pela figura simbólica de Hércules que, por um lado, liberta Prometeu (a tendência ocidental, titânica, humanista pura), e por outro lado, auxilia Zeus e os deuses a derrotarem a rebelião dos gigantes (ou seja, serve às regras sagradas e à Ordem espiritual).
O Sul, ao contrário, se projeta sobre todas as três orientações segundo uma imagem oposta. No Norte, ele dá o efeito de "arcaísmo" e estagnação cultural. Mesmo as tradições mais nórdicas sob a influência sulista, os elementos "paleo-asiáticos", "fínicos" ou "esquimó" adquirem os caracteres de "adoração de ídolos" e "fetichismo". (Isso é característico, em particular, da civilização germano-escandinava na "época dos escaldos").
No Oriente, as forças do Sul são demonstradas em sociedades despóticas, nas quais a natural e justa indiferença oriental pelo indivíduo se transforma em uma negação do Sujeito Supra-Humano. Todas as formas de totalitarismo oriental, tanto tipológico quanto racial, estão ligadas ao Sul.
E por último, no Ocidente o Sul se expressa nas formas extremamente brutas e materialistas de individualismo, em que os indivíduos atomizados alcançam o limite da degeneração anti-heróica, adorando apenas o "velo de ouro" do conforto e do hedonismo egoísta. Que exatamente essa combinação das duas tendências sacro-geopolíticas gera o tipo mais negativo de civilização é óbvio, já que nela duas atitudes, já negativas em si mesmas - o Sul na linha vertical e o Ocidente na linha horizontal - se somam.
De Continentes a Meta-Continentes
Se desde a perspectiva da geografia sagrada o Norte simbólico corresponde univocamente a aspectos positivos, e o Sul a negativos, em uma imagem geopolítica exclusivamente moderna do mundo tudo é muito mais complexo, e em alguma medida até mesmo invertido. A geopolítica moderna compreende os temos "Norte" e "Sul" como categorias completamente distintas da compreensão da geografia sagrada.
Primeiramente, o paleocontinente do Norte, Hiperbórea, desde muitos milênios já não existe em um nível físico, permanecendo uma realidade espiritual, sobre a qual é dirigido o olhar espiritual do iniciado, extraindo a Tradição original.
Em segundo lugar, a antiga raça nórdica, a raça dos "mestres brancos", associada com o pólo da época primordial, não coincide com o que comumente se chama hoje "raça branca", baseada apenas em características físicas, cor da pele, etc. A Tradição Nórdica e sua população original, os "nórdicos autóctones" já há muito não representam qualquer realidade histórico-geográfica concreta. Por juízo comum, mesmo os últimos resquícios dessa cultura primordial desapareceram da realidade física já há milênios atrás.
Assim, o Norte na Tradição é uma realidade meta-histórica e meta-geográfica. O mesmo pode ser dito também sobre a "raça hiperbórea" - uma "raça" não no sentido biológico, mas em um sentido puramente metafísico, espiritual. (Esse tema de "raças metafísicas" foi desenvolvida em detalhe nas obras de Julius Evola).
O continente do Sul e todo o Sul da Tradição, também, já há muito tempo não existem mais em um estado puro, não menos do que suas populações mais antigas. De algum modo, o "sul" de certo momento em diante se torna praticamente o planeta inteiro, já que a influência do centro polar iniciático original e seus mensageiros do mundo diminuíram. As raças modernas do Sul representam um produto de múltiplas misturas com raças do norte, e a cor da pele já há muito deixou de ser um sinal distintivo do pertencimento a tal ou qual "raça metafísica".
Em outras palavras, a imagem geopolítica moderna do mundo possui muito pouco em comum com a visão principal do mundo em seu corte supra-histórico, meta-temporal. Os continentes e suas populações em nossa época se distanciaram ao extremo desses arquétipos, que correspondiam a eles em tempos primordiais. Portanto, entre continentes reais e raças reais (as realidades da geopolítica moderna), por um lado, e meta-continentes e meta-raças (as realidades da geografia sagrada tradicional), por outro lado, hoje existe não só uma simples discrepância, mas quase uma correspondência inversa.
A Ilusão do "Norte rico"
A geopolítica moderna usa o conceito de "norte" mais frequentemente com a definição de "rico" - "o rico Norte", e também "o avançado Norte". Isso conota todo o agregado da civilização ocidental, dando sua atenção básica ao desenvolvimento do lado material e econômico da vida. O "Norte rico" é rico não por ser mais esperto, ou mais intelectual, ou mais espiritual que o "Sul", mas porque ele constrói seu sistema social sobre o princípio da maximização do material que pode ser tomado do potencial social e natural, da exploração dos recursos humanos e naturais. A imagem racial de "Norte rico" está ligada àqueles povos que possuem pele branca, e essa característica se situa nas raízes das várias versões, explícitas ou ocultas, de "racismo ocidental" (em particular anglo-saxão). O sucesso do "Norte rico" na esfera material foi erguido a um princípio político e mesmo "racial" naqueles países que foram a vanguarda do desenvolvimento industrial, técnico e econômico - ou seja, Inglaterra, Holanda e depois Alemanha e os EUA. Nesse caso, o bem-estar material e quantitativo foi igualado a um critério qualitativo, e sobre essa base os preconceitos mais ridículos contra o "barbarismo", o "primitivismo", o "subdesenvolvimento" e a "untermenschlichkeit" dos povos sulistas (ou seja, daqueles que não pertencem ao "Norte rico") se desenvolveram. Tal "racismo econômico" foi demonstrado de modo especialmente claro nas conquistas coloniais anglo-saxônicas, e posteriormente sua versão embelezada foi introduzida nos aspectos mais contraditórios e grosseiros da ideologia nacional-socialista. Assim, muitas vezes ideólogos nazistas simplesmente misturavam palpites vagos sobre "nordismo espiritual" puro e "raça ariana espiritual" com um racismo vulgar, biológico, mercantilista do tipo inglês. (Aliás, precisamente essa substituição de categorias de geografia sagrada com categorias de desenvolvimento material e técnico foi também o lado mais negativo do nacional-socialismo que o levou, eventualmente, a seu colapso político, teórico e mesmo militar). Mas mesmo após a derrota do Terceiro Reich, esse tipo de racismo do "Norte rico" não desapareceu da vida política. Porém seus portadores se tornaram em primeiro lugar os EUA e seus parceiros atlânticos na Europa Ocidental. Certamente, nas doutrinas mundialistas mais recentes do "Norte rico" a questão da pureza biológica e racial não é enfatizada, mas não obstante, na prática, em suas relações com os países subdesenvolvidos e menos desenvolvidos do Terceiro Mundo, o "Norte rico" também hoje demonstra apenas soberba "racista", típica tanto de colonialistas ingleses como de seguidores ortodoxos do nacional-socialismo alemão de Rosenberg.
Na verdade, o "Norte rico" significa geopoliticamente aqueles países em que forças diretamente opostas à Tradição venceram - forças de quantidade, materialismo, ateísmo, degradação espiritual e degeneração emocional. "Norte rico" significa algo radicalmente distinto de "nordismo espiritual", de "espírito hiperbóreo". A substância do Norte na geografia sagrada é a primazia do espírito sobre a substância, a vitória definitiva e total da Luz, da Equidade e da Pureza sobre as trevas da vida animal, a arrogância de paixões individuais e o lamaçal do egoísmo mundano. A geopolítica mundialista do "Norte rico", ao contrário, significa bem-estar exclusivamente material, hedonismo, sociedade de consumo, o pseudo-paraíso artificial e não-problemático daqueles que Nietzsche chama de "os últimos homens". O progresso material da civilização técnica foi acompanhada por um regresso espiritual monstruoso da cultura sagrada, e consequentemente, desde o ponto de vista da Tradição, a "riqueza" do Norte moderno "avançado" não pode servir como critério de superioridade genuína acima da "pobreza" material e do atraso técnico do "Sul primitivo" moderno.
Ademais, a "pobreza" material do Sul muitas vezes está inversamente ligada à conservação nas regiões sulistas das formas genuinamente sagradas de civilização; isso significa que por trás de tal "pobreza" uma riqueza espiritual está às vezes oculta. Ao menos duas civilizações sagradas existem ainda hoje no espaço sulista, à despeito de todas as tentativas do "Norte rico" (e agressivo) de impor sobre todos sua própria medida e caminho de desenvolvimento. Essas são a Índia hinduísta e o mundo islamista. No que concerne a tradição do extremo oriente, há vários pontos de vista: alguns veem mesmo sob a camada de retórica "marxista" e "maoísta" alguns princípios tradicionais, que foram sempre indiscutíveis para a civilização chinesa sagrada. De qualquer maneira, mesmo aquelas regiões sulistas habitadas por povos que preservam sua devoção às mais antigas e quase esquecidas tradições sagradas, em comparação com o "Norte rico" ateizado e totalmente materialista, exibem características "espirituais", "rigorosas" e "normais" - enquanto que o "Norte rico" ele próprio, desde um ponto de vista espiritual, é completamente "anormal" e "patológico".
O "Sul pobre" em projetos mundialistas é efetivamente sinônimo do "Terceiro Mundo". Esse mundo foi chamado de "Terceiro" durante a Guerra Fria, e esse conceito supunha que os outros dois "mundos" - o capitalista avançado e o soviético menos avançado - são mais relevantes e significativos para a geopolítica global, do que todas as outras regiões. Basicamente, a expressão "Terceiro Mundo" possui um sentido pejorativo: segundo a lógica utilitária do "Norte rico", tal definição efetivamente equipara países do "Terceiro Mundo" às "bases de recursos naturais e humanos, que devem apenas obedecer, ser explorados e usados para seus propósitos. Assim, o "Norte rico" habilidosamente manobrou as características político-ideológicas tradicionais e religiosas do "Sul pobre", tentando subjugar a suas preocupações exclusivamente materialistas e econômicas aquelas forças e estruturas, que em potencial espiritual excediam em muito o nível espiritual do "Norte". Isso foi quase sempre possível para ele, já que o próprio momento cíclico de desenvolvimento de nossa civilização favorece tendências pervertidas, anormais e anti-naturais - já que, segundo a Tradição, nós estamos agora no último período do "século sombrio", Kali-Yuga. O hinduísmo, o confucionismo, o Islã, as tradições autóctones dos povos "não-brancos" se tornaram para os conquistadores materiais do "Norte rico" simplesmente um obstáculo na realização de seus propósitos, mas ao mesmo tempo eles muitas vezes tem usado os aspectos separados da Tradição para alcançar seus propósitos mercantilistas - explorando contradições, características religiosas ou problemas nacionais. Tal uso utilitário dos vários aspectos da Tradição para propósitos exclusivamente anti-tradicionais foi um mal ainda maior, do que a negação direta de todos os valores tradicionais, já que a maior perversão consiste em que o grandioso é sujeito ao insignificante.
De fato, o "Sul pobre" é "pobre" em um nível material precisamente por causa de suas atitudes espirituais, sempre dando aos aspectos materiais da existência um lugar menor e desimportante. O Sul geopolítico em nosso tempo preservou em geral uma atitude exclusivamente tradicionalista em relação aos objetos do mundo externo - uma atitude quieta, distante e, eventualmente, indiferente - em marcado contraste com a obsessão material do "Norte rico", a sua paranoia materialista e hedonista. As pessoas do "Sul pobre" normalmente habitam na Tradição, e até agora suas existências são mais plenas, profundas e mesmo mais magníficas, na medida em que a coparticipação ativa na Tradição sagrada concede sobre todos os aspectos de suas vidas pessoais aquele sentido, aquela intensidade, aquela saturação das quais há muito estão privados os representantes do "Norte rico", - tornados histéricos por neuroses, medos materiais, desolação interna, falta de direção existencial completa, representando somente um caleidoscópio de vidro, somente uma imagem vazia.
Poderia ser dito que a correlação entre Norte e Sul em tempos originais é polarmente oposta a sua correlação em nossa época, já que é o Sul que hoje ainda preserva alguns elos com a Tradição, enquanto o Norte as perdeu definitivamente. Não obstante, essa afirmação não cobre em absoluto toda a imagem da realidade, já que a verdadeira Tradição não pode admitir em relação a si mesma uma referência tão humilhante, quanto as práticas do "Norte rico" ateístico-agressivo com o "Terceiro Mundo". O fato é que a Tradição é preservada no Sul apenas de modo inerte, fragmentário, parcial. Ela ocupa uma posição passiva e resiste, somente se defendendo. Portanto o Norte espiritual não se transfere completamente para o Sul no fim dos tempos - no Sul há apenas um acúmulo e preservação de impulsos espirituais, nunca associados com o Norte sagrado. Em linha de princípio, a iniciativa tradicional ativa não pode emanar do Sul. E ao contrário, o "Norte rico" mundialista, conseguiu endurecer de tal modo seu efeito pernicioso sobre o planeta devido à especificidade das regiões nórdicas, predispostas à atividade. O Norte foi e permanece sendo o local eletivo de força, portanto a verdadeira eficiência pertence às iniciativas geopolíticas que vem do Norte.
O "Sul pobre" possui hoje toda a prioridade espiritual perante o "Norte rico", mas ele não pode servir como alternativa séria à agressão profana do "Norte rico", nem pode oferecer o projeto geopolítico radical capaz de subverter a imagem patológica do espaço planetário moderno.
O Papel do "Segunda Mundo"
Na imagem geopolítica bipolar "Norte rico - Sul pobre" sempre existiu um componente adicional possuidor de sentido relevante e auto-sustentador. É o "segundo mundo". Sob a expressão "segundo mundo" é convenientemente compreendido para significar o campo socialista integrado no sistema soviético. Esse "segundo mundo" não era nem o "Norte rico" atual, na medida em que motivos definitivamente espirituais influenciaram secretamente a ideologia nominalmente materialista do socialismo soviético, nem o atual "Terceiro Mundo", já que como um todo a atitude em relação ao desenvolvimento material, "progresso" e outros princípios profanos residia nas raízes do sistema soviético. A URSS geopoliticamente eurasiana está localizada tanto nos territórios da "Ásia pobre", como nas terras da suficientemente "civilizada" Europa. Durante o período socialista, o cinturão planetário do "Norte rico" foi rompido na Eurásia oriental, complicando a clareza das relações geopolíticas em um eixo Norte-Sul.
O fim do "Segundo Mundo" como uma civilização especial deixa para o espaço eurasiano da antiga URSS duas alternativas - ou ser integrada no "Norte rico" (isto é, o Ocidente e os EUA), ou ser lançada no "Sul pobre", ou seja, se transformar no "Terceiro mundo". Como uma variante de compromisso, a separação de regiões (parte para o "Norte", e parte para o "Sul"), também é possível. Como sempre tem sido nos últimos séculos, a iniciativa de redistribuir espaços geopolíticos nesse processo pertence ao "Norte rico", que, cinicamente usando os paradoxos do mesmo conceito de "Segundo Mundo", fixa novas fronteiras geopolíticas e rompe zonas de influência. Fatores nacionais, econômicos e religiosos servem aos mundialistas apenas como instrumentos em sua atividade cínica e motivada de modo profundamente materialista. Não é surpreendente, que para além da retórica "humanista" falsa, as razões "racistas" invocadas para inspirar nos russos um complexo de superioridade "branca" em relação ao sul asiático e caucásico será usada cada vez mais. A isso se correlaciona o processo inverso - a rejeição definitiva de territórios sulistas do antigo "Segundo Mundo" para o "Sul pobre" é acompanhada pela jogada da carta das tendências fundamentalistas, a inclinação do povo à Tradição e o renascimento da religião.
O "Segundo Mundo", estando desintegrado, é rompido ao longo das linhas do "tradicionalismo" (o tipo sulista, inercial, conservador) e do "anti-tradicionalismo" (o tipo ativamente nórdico, modernista e materialista). Tal dualismo, que hoje está somente planejado, mas que no futuro próximo se tornará o fenômeno dominante da geopolítica eurasiana, é predeterminado pela expansão da compreensão mundialista do mundo em termos de "Norte rico"-"Sul pobre". Qualquer tentativa de salvar o antigo Grande Espaço Soviético, qualquer tentativa de simplesmente salvar o "Segundo Mundo" como algo auto-sustentador e se equilibrando na metade do caminho entre Norte e Sul (em seu sentido exclusivo moderno), não pode ser coroado com sucesso, sem por em dúvida a concepção polar fundamental da geopolítica moderna, compreendida e realizada em sua natureza real, deixando de lado todas as declarações enganosas de humor humanitário e econômico.
O "Segundo Mundo" desaparece. Não há mais lugar para ele no mapa geopolítico moderno. Ao mesmo tempo, a pressão do "Norte rico" sobre o "Sul pobre" aumenta, sendo um com uma sociedade tecnocrática materialista agressiva na ausência de um poder intermediário, que existiu até ontem - o "Segundo Mundo". Qualquer destino diferente para o "Segundo Mundo", do que a partição total segundo as regras ditadas pelo "Norte rico", é possível somente através de uma protelação radical da lógica planetária de um eixo Norte-Sul dicotômico, considerado em uma chave mundialista.
O Projeto do "Norte Ascendente"
O "Norte mundialista rico" globaliza sua dominação sobre o planeta pela partição e destruição do "Segundo Mundo". Na geopolítica moderna isso é também chamado de "Nova Ordem Mundial". As forças ativas da anti-tradição consolidam sua vitória sobre a recalcitrância das regiões sulistas, preservando seu atraso econômico e defendendo a Tradição em suas formas residuais. As energias geopolíticas internas do "Segundo Mundo" são colocadas perante uma escolha - ou serem incorporadas no sistema do "cinturão nórdico civilizado" e perder definitivamente qualquer conexão com uma história sagrada (projeto do mundialismo esquerdista), ou se transformar em um território ocupado sendo-lhe permitida uma restauração parcial de alguns aspectos da tradição (projeto do mundialismo direitista). Nessa direção os eventos hoje estão se desenvolvendo e vão se desenvolver no futuro próximo.
Como o projeto alternativo é possível formular teoricamente um caminho diferente de transformação geopolítica baseada na rejeição da lógica mundialista Norte-Sul e em retornar ao espírito da genuína geografia sagrada - tanto quanto possível ao fim da era sombria. É o projeto do "Grande Retorno" ou, em terminologia diferente, da "Grande Guerra dos Continentes".
Em suas características mais gerais, a essência desse projeto é como segue.
1) O "Norte rico" se opõe não ao "Sul pobre", mas ao "Norte pobre". O "Norte pobre" é um ideal, o ideal sagrado de retornar às fontes nórdicas de civilização. Tal Norte é "pobre" porque ele é baseado no ascetismo total, na devoção radical aos mais altos valores de Tradição, no desprezo completo do material em nome do espiritual. O "Norte pobre" existe geograficamente apenas nos territórios da Rússia, que, estando em efeito, "pelo Segundo Mundo", resistiram sociopoliticamente até o último momento à adoção final de uma civilização mundialista em suas formas mais "progressivas". As terras nórdicas eurasianas da Rússia são os únicos territórios na terra que não foram dominadas completamente pelo "Norte rico", habitada por povos tradicionais e sendo uma terra incognita do mundo moderno. O caminho do "Norte pobre" para a Rússia significa a recusa em se incorporar no cinturão mundialista, de arcaizar suas próprias tradições e de reduzi-las ao nível folclórico de uma reserva etno-religiosa. O "Norte pobre" deve ser espiritual, intelectual, ativo e agressivo. Em outras regiões do "Norte rico" uma oposição potencial do "Norte pobre" também é possível - que pode ser demonstrada em uma sabotagem radical por parte da elite intelectual ocidental ao curso estabelecido da "civilização mercantilista", na rebelião contra o mundo da finança pelos valores antigos e eternos de Espírito, equidade e auto-sacrifício. O "Norte pobre" começa uma luta geopolítica e ideológica contra o "Norte rico", rejeitando seus projetos, destruindo de dentro e de fora seus planos, mitigando sua eficiência impoluta, esmagando suas manipulações sociais e políticas.
2) O "Sul pobre", incapaz de combater por si mesmo o "Norte rico", entra em uma aliança radical com o "Norte pobre (eurasiano)" e começa uma luta de liberação contra a ditadura "do norte". É especialmente importante atacar os representantes da ideologia do "Sul rico", ou seja, aquelas forças que, trabalhando com o "Norte rico", representam "desenvolvimento", progresso" e "modernização" de países tradicionais, que praticamente significarão somente um recuo crescente dos restos da Tradição sagrada.
3) O "Norte pobre" do Oriente eurasiano, junto com o "Sul pobre", se estendendo em um círculo ao redor de todo o planeta, concentra as forças que lutam contra o "Norte rico" do Ocidente atlantista. Assim se coloca um fim para sempre às versões ideologicamente vulgares do racismo anglo-saxão, saudando a "civilização técnica dos povos brancos" e ecoando a propaganda mundialista. (Alain de Benoist expressou essa ideia no título de seu famoso livro "O Terceiro Mundo e a Europa: A Mesma Luta"; seu argumento é, obviamente, "Europa Espiritual, a "Europa dos Povos e Tradições", ao invés da "Europa dos Bens de Maastricht"). Intelectualidade, atividade e o perfil espiritual o Norte sagrado genuíno fazem as tradições se reverterem à Fonte nórdica, e erguem o "Sul" em uma revolta planetária contra o único inimigo geopolítico. A recalcitrância passiva do "Sul" adquire assim um fulcro no messianismo planetário dos "nórdicos", rejeitando radicalmente o ramo degenerado e anti-sagrado daqueles povos brancos que seguiram o caminho do progresso técnico e do desenvolvimento material. Incendeia a Revolução Geopolítica planetária, supra-racial e supra-nacional baseada na solidariedade fundamental do "Terceiro Mundo" com aquela parte do "Segundo Mundo" que rejeita o projeto do "Norte rico".
Durante a luta, a chama da "ressurreição do Norte espiritual", a chama de Hiperbórea transforma a realidade geopolítica. A nova ideologia global é a ideologia da Restauração Final, colocando o ponto final na história geopolítica da civilização - mas não aquele ponto, que os porta-vozes do Fim da História queriam colocar. A variante materialista, ateísta, anti-sacral, tecnocrática, atlantista do Fim é transformada em um epílogo diferente - a Vitória final do Avatar sagrado, a vinda do Terrível Destino, dando àqueles que escolheram pobreza voluntária um reino de abundância espiritual e àqueles que preferiram riqueza fundada no assassinato do Espírito, danação eterna e tormentos no inferno.
Os continentes perdidos são levantados dos abismos do passado. Meta-continentes invisíveis aparecem na realidade. Uma Nova Terra e um Novo Céu se erguem.
Esse caminho não é da geografia sagrada para a geopolítica, mas ao contrário, da geopolítica à geografia sagrada.