Um Mundo Heptapolar
O que aconteceu na 15ª Cúpula do BRICS em Joanesburgo é realmente histórico. Mesmo que o Presidente da Rússia, fundador do BRICS, não tenha participado, ainda assim é um ponto de virada na história moderna. A ordem mundial está mudando diante de nossos olhos. Vamos repetir o significado das mudanças tectônicas em andamento.
Inicialmente, “BRIC” era um acrônimo para quatro países – Brasil, Rússia, Índia e China – que o economista Jim O’Neill propôs em 2001 para resumir as características dos países com economias em desenvolvimento ativo que pretendem alcançar o Ocidente desenvolvido em vários parâmetros importantes. Nesse sentido, os países do BRIC passaram a ser entendidos como o que Immanuel Wallerstein chamou de “países semiperiféricos”. Na concepção de Wallerstein sobre o sistema mundial, o mundo era dividido em três zonas:
- O núcleo (o rico Ocidente),
- A semiperiferia (ou seja, os BRICs) e
- A periferia (o Sul pobre).
O próprio Wallerstein, no espírito da ideologia trotskista, previu o colapso dos países da semiperiferia. As elites, em sua opinião, seriam integradas ao sistema ocidental (um exemplo típico é a oligarquia russa, bem como os magnatas financeiros na Índia e, em parte, na China). E as massas oprimidas e arruinadas por essas elites seriam forçadas a se integrar ao proletariado mundial, ou seja, a se igualar à periferia. Nesse conceito, a migração global é o principal impulsionador dessa estratificação da semiperiferia em uma elite colonial que aspira a se tornar o núcleo (ou seja, a se juntar ao Ocidente) e uma subclasse internacional, na qual os trabalhadores migrantes se igualarão e se misturarão à população local empobrecida.
Outra definição dos países do BRIC é “segundo mundo”. Novamente, o “primeiro mundo” é o Ocidente rico e o “terceiro mundo” são os países irremediavelmente atrasados. O “segundo mundo” está estritamente no meio: eles vivem muito melhor do que o terceiro mundo, mas estão muito atrás do “primeiro mundo”.
Assim, os países do BRIC mostraram sinais de autoconsciência e, em 2006, por iniciativa do presidente russo Vladimir Putin, decidiram formar um clube de países do “segundo mundo” ou da “semiperiferia”.
Percebeu-se que os BRICs eram baseados em quatro civilizações:
- Brasil, como distinto representante da Civilização Ibero-Americana;
- Rússia-Eurásia (afinal, os eslavófilos e eurasianistas entenderam a Rússia como Estado-Civilização planetário independente);
- Índia;
- China, cuja identidade e antiguidade civilizacionais é inquestionável.
Assim, descobriu-se que os países da semiperiferia ou do segundo mundo não são apenas um determinado nível de desenvolvimento econômico ou um estágio no caminho da modernização nos moldes ocidentais, mas civilizações antigas e bastante distintas. Assim, muitos viram a criação do BRIC como um clube multipolar e, portanto, como uma confirmação do acerto de Samuel Huntington, que previu um retorno às civilizações e um sistema multipolar no futuro, que substituiria a divisão bipolar do mundo (com base no princípio do campo socialista/campo capitalista) em vez do mundo unipolar proclamado pelos liberais e globalistas (“o fim da história” de Fukuyama, o principal oponente de Huntington).
Quatro civilizações ou Estados-Civilizações (Zhang Weiwei) se juntaram ao BRIC no primeiro estágio. E o princípio da associação era posicionar-se fora da zona de influência dominante da hegemonia ocidental. Cada uma das civilizações tinha suas próprias justificativas fundamentais para sua própria soberania.
- China: Economia, Finanças e Demografia;
- Índia: Economia, Demografia e Tecnologia;
- Rússia: Recursos Naturais, Armas Nucleares e uma História Política de afirmar a soberania perante o Ocidente;
- Brasil: Economia, Indústria e Demografia.
O BRIC foi inicialmente muito cauteloso e pacífico, mas, de alguma forma, apresentou-se discretamente como um pilar de uma alternativa à unipolaridade, rejeitando a hegemonia rígida do “Ocidente coletivo” (OTAN e outras organizações rigidamente unipolares dominadas pelos EUA). Enquanto a civilização ocidental se autoproclamava a única – única – civilização, civilização no singular – que é a essência do globalismo e da unipolaridade, os países do BRIC representavam civilizações soberanas e independentes, diferentes do Ocidente, com uma longa história e um sistema de valores tradicionais completamente original. E o clube multipolar expressou sua determinação em defender esse estado de coisas no futuro.
Ao mesmo tempo, cada um dos países do BRIC era mais do que apenas um país.
O Brasil, a maior potência da América do Sul, representava todo o continente latino-americano.
A Rússia, a China e a Índia, por si só, têm escala suficiente para serem consideradas civilizações. Mas eles também são mais do que Estados-nação.
A Rússia é a vanguarda da Eurásia, o “Grande Espaço” eurasiático.
A China é responsável por uma área significativa das potências vizinhas da Indochina. O projeto Um Cinturão, Uma Rota delineia com precisão a zona de influência em expansão do polo chinês.
A Índia também está estendendo sua influência para além de suas fronteiras – pelo menos para Bangladesh e Nepal.
Quando a África do Sul se juntou aos países do BRIC em 2011 (daí o acrônimo BRICS – o “C” no final de África do Sul), o continente foi simbolicamente representado por esse maior país africano.
Mas o evento mais importante na história do BRICS ocorreu na XV Cúpula, realizada de 22 a 24 de agosto de 2023 em Joanesburgo. Lá, foi tomada uma decisão histórica de admitir mais seis países na organização: Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Cada um desses países, ao entrar para o clube multipolar, trouxe consigo algo muito mais do que apenas mais um pedido de participação em associações internacionais, que já são abundantes sem o BRICS.
A adesão de quatro potências islâmicas – o Irã xiita e a Arábia Saudita sunita, os Emirados Árabes Unidos e o Egito – foi fundamental. Dessa forma, consolidou-se a participação direta no mundo multipolar de toda a civilização islâmica, representada pelos ramos sunita e xiita.
Além disso, junto com o Brasil de língua portuguesa, a Argentina de língua espanhola, outra potência forte e independente, juntou-se ao BRICS. Em meados do século XX, os teóricos da unificação da América do Sul em um grande espaço consolidado – sobretudo o general argentino Juan Perón e o presidente brasileiro Getúlio Vargas – consideravam a aproximação entre o Brasil e a Argentina como o acorde decisivo desse processo. Se isso for alcançado, o processo de integração da ecumene latino-americana (A. Buela) será irreversível. E é exatamente isso que está acontecendo agora no contexto da adesão das duas maiores potências da América do Sul – Brasil e Argentina – ao clube multipolar. Não é por acaso que os globalistas ficaram tão furiosos com o próprio fato da adesão da Argentina ao BRICS, mobilizando todos os seus agentes de influência na política argentina para impedir que isso acontecesse.
A aceitação da Etiópia também é altamente simbólica. É o único país africano que se manteve independente durante toda a era colonial, preservando sua soberania, sua independência e sua cultura única (os etíopes são o povo cristão mais antigo). Juntamente com a África do Sul, a Etiópia está fortalecendo sua presença no clube multipolar do continente africano.
De fato, na nova composição do BRICS, temos um modelo completo de união de todos os 6 polos – civilizações, “Grandes Espaços” que existem no planeta. Com exceção do Ocidente, que ainda está desesperado para preservar sua hegemonia e estrutura unipolar. Mas agora ele não enfrenta países díspares e fragmentados, cheios de contradições internas e externas, mas uma força unida da maioria da humanidade, determinada a construir um mundo multipolar.
Esse mundo multipolar é composto pelas seguintes civilizações:
- O Ocidente (EUA+UE e seus vassalos, incluindo o outrora orgulhoso e original Japão);
- China (+Taiwan) e seus satélites;
- Rússia (como integrador do espaço eurasiático);
- Índia e sua zona de influência;
- América Ibérica (com o núcleo de Brasil+Argentina);
- África (África do Sul + Etiópia, com Mali, Burkina Faso, Níger, etc., emergindo da influência colonial francesa);
- Mundo Islâmico (em duas versões – Irã xiita, Arábia Saudita, EAU e Egito sunitas).
Assim, temos a estrutura do mundo heptapolar, que consiste em sete civilizações de pleno direito, algumas das quais já estão totalmente formadas (Ocidente, China, Rússia, Índia) e outras (mundo islâmico, África, América Latina) estão a caminho.
Ao mesmo tempo, no contexto do mundo heptapolar, uma espécie de heptarquia emergente, uma civilização – a ocidental – reivindica a hegemonia, enquanto as outras seis lhe negam esse direito, aceitando apenas uma ordem multipolar e reconhecendo o Ocidente como apenas uma das civilizações, juntamente com outras.
Assim, o acerto de Samuel Huntington, que via o futuro no retorno das civilizações, foi confirmado na prática, enquanto a falácia da tese de Fukuyama, que acreditava que a hegemonia global do Ocidente liberal (o fim da história) já havia sido alcançada, tornou-se óbvia. Portanto, Fukuyama só resta condenado a dar lições aos neonazistas ucranianos, a última esperança dos globalistas para impedir o início da multipolaridade, pela qual a Rússia na Ucrânia está lutando hoje.
Agosto de 2023 pode ser considerado o aniversário do mundo multipolar – e ainda mais precisamente heptapolar -.
A heptarquia está aqui. É hora de examinar mais de perto como os próprios polos civilizacionais interpretam a situação em que se encontram.
Tradução: https://novaresistencia.org