Todas as sociedades devem se reorganizar segundo sua história, livres de todo dogmatismo
Entrevista por Alessandrino
A Rússia quer substituir o vácuo de poder estadunidense ou instar os povos do mundo à liberdade? O mundo já é multipolar? O bloco atlantista já foi derrotado? Qual é a relação entre a Quarta Teoria Política e a Teoria do Mundo Multipolar? Essas são questões geopolíticas bastante interessantes abordadas por Aleksandr Dugin nessa recente entrevista?
Tivemos a boa sorte de entrevistar provavelmente o maior filósofo vivo. O originador da Quarta Teoria Política. Aquele a quem os cães de guarda das elites liberais progressistas chamam astutamente de “o filósofo mais perigoso do mundo”.
Ele nos falou de uma luta terrível entre um mundo moribundo e uma nova realidade emergente. Entre o agonizante sistema unipolar, liderado pela UE e pelos Estados Unidos de Biden, e o sistema multipolar, formado pelo bloco eurasiático.
O Dugin cogita um novo mundo, um mundo mais justo. Um mundo no qual os povos podem se organizar de acordo com sua história, sua cultura, sua religião sem ter que prestar contas a um poder central sufocante e indiferente.
Dugin vê a Rússia como líder moral desta grande revolução cultural, histórica, econômica, geopolítica e política.
Quem vencerá esta guerra? Os globalistas não vão parar por nada. Estamos prontos para lutar por nossa liberdade?
Esta entrevista é um apelo, um chamado. Devemos estar cientes de quem somos, de nossa identidade, de nossa história, de nossa cultura. O inimigo é forte e insidioso. É por isso que devemos nos unir nesta grande guerra que vê duas realidades se enfrentando: as elites globalistas ou os povos do mundo. Tirania ou liberdade.
Você poderia descrever a situação na Rússia? Na Itália, recebemos informações parciais e frequentemente deturpadas sobre a situação na Rússia “pós-Covid”.
Creio que na Rússia as restrições não têm sido tão brutais como no Ocidente. No entanto, ainda existem algumas restrições para a entrada em teatros, cinemas, alguns restaurantes, bem como para o respeito à distância física, mas elas não são tão radicais.
Acho que, em comparação com a situação da COVID em outros países da Europa, a Rússia está, de algum modo, tranquila. Mas não podemos dizer que nós, russos, vencemos a COVID. Nós não o fizemos.
Os únicos que realmente venceram foram os chineses, que isolaram desde o início a região atacada pela COVID e limitaram seu acesso. Na Rússia não fizemos isso e como resultado tivemos muitos contágios, mas os médicos trabalharam e ainda trabalham muito bem, heroicamente.
A cúpula do governo não lidou com a situação de forma brilhante, mas, no geral, eles responderam adequadamente. Não podemos definir a resposta do governo como excelente, mas ao contrário de alguns países europeus, cujas escolhas se revelaram catastróficas, eles fizeram um bom trabalho.
O bloco eurasiático parece estar avançando inexoravelmente. Enquanto que a UE e o bloco norte-americano parece estar retrocedendo cada vez mais. Como os ativos geopolíticos do mundo estão mudando?
Estamos vivendo um momento crítico e crucial e estamos em plena transição da ordem que foi criada nos anos 90 do século passado, após o colapso da União Soviética. A União Soviética existiu no contexto da bipolaridade. Após o colapso disso, foi estabelecida uma ordem unipolar que durou, mais ou menos, até o presente momento.
Mas há vinte anos um processo alternativo tomou forma que viu a auto-afirmação de dois pólos alternativos ao único pólo atlanticista: China e Rússia. A China e a Rússia pertencem à Eurásia. São duas grandes potências que começaram a se reafirmar e voltaram ao cenário histórico como potências independentes. No início estavam em competição entre si, mas gradualmente perceberam que para sair da influência ocidental era necessário criar um pacto eurasiático e afirmar uma ordem mundial multipolar.
Esta foi a decisão chave que contrastou a ordem unipolar com uma ordem multipolar, na qual dois pólos já coexistiam: o pólo financeiro e econômico chinês e o pólo militar e estratégico russo.
A Eurásia representa um sistema alternativo à ordem mundial unipolar. E quer ser autenticamente um sistema multipolar, não de propriedade russa ou chinesa: quer realmente dar a possibilidade a outros pólos de se afirmarem. Na verdade, esta multipolaridade não é reservada aos chineses ou russos, mas é uma visão muito mais ampla do mundo, onde outros pólos, independentes dos Estados Unidos, podem coexistir.
Mas os atlantistas – como no caso de Biden que é ele próprio um atlantista, neocon e globalista radical – não querem que o sistema multipolar se espalhe. Eles querem impor o antigo sistema unipolar.
É por isso que estamos em meio a uma transição: Biden, os globalistas, uma parte do establishment americano declarou guerra não só à Rússia, mas a todas as potências e todos os movimentos que apóiam a necessidade de uma nova ordem multipolar.
Declararam guerra não apenas à China e à Rússia, mas também ao populismo americano e europeu, às tendências multipolares na América Latina, ao mundo islâmico: em suma, a todos aqueles que são a favor da multipolaridade.
A multipolaridade se tornou o inimigo número um da unipolaridade. É por isso que estamos passando por uma transição que podemos definir como radical.
Podemos dizer que o bloco eurasiático, um proponente de instâncias multipolares, está crescendo e as hegemonias ocidentais estão em colapso?
As oligarquias ocidentais ainda têm muito poder. Na verdade, eles podem vencer batalhas importantes: por exemplo, na Itália, o governo verde-amarelo, que combinou as forças populistas da direita e da esquerda, foi destruído por essas forças globalistas liberais.
Eles querem destruir os coletes amarelos na França, onde existe uma aliança entre a direita populista e a esquerda populista. Os globalistas estão prontos para lançar um último grande ataque à multipolaridade.
Isto explica o ataque a Putin, através da tentativa de impor Navalny; a grande pressão militar contra a China e a tentativa de levar a Marinha dos EUA ao Pacífico para defender Taiwan; ou a questão uigur ou outras questões sensíveis para a China. Isto não depende do comportamento de Putin ou Xi Jinping.
No tabuleiro de xadrez geopolítico, o agonizante sistema unipolar está em uma luta inigualável contra o emergente sistema multipolar. Esta é a atual configuração geopolítica global.
Na sua opinião, os poderes que controlam o bloco da UE e a América do Norte conseguirão desestabilizar a Rússia como fizeram com os Estados Unidos ou o caso Navalny sancionou a impossibilidade de penetrar no tecido sociopolítico russo?
O caso Navalny mostrou que a intervenção direta na política interna russa não poderia ser bem sucedida, porque Navalny é quase desconhecido pela grande maioria da população.
Ele é um personagem que não tem apoio popular, se excluirmos uma parte da juventude e da população das grandes cidades que são pró-ocidentais e liberais, cuja massa crítica do ponto de vista eleitoral é absolutamente imperceptível. Essas pessoas representam mais ou menos zero por cento nas eleições. É um zero estatístico. Não é comparável com a situação na Armênia, onde existe uma oposição substancial. Na Rússia, estatisticamente falando, não há oposição.
É por isso que a idéia de penetrar na política interna russa foi desastrosa. Os globalistas não tinham nenhuma chance de vencer, porque Navalny não é apoiado por ninguém.
Mas era um teste para ver como os russos reagiriam a um ataque. Podemos colocar em um contexto de guerra social híbrida, a tentativa dos globalistas de se imporem e penetrarem na política interna russa.
A tentativa falhou, mas isso permitiu aos globalistas, também graças à reação violenta do governo russo contra Navalny, fortalecer a OTAN, demonizar Putin e reconectar-se com a Europa que com Trump estava se afastando dos Estados Unidos.
Biden conseguiu, com o caso Navalny, restabelecer as relações, que estavam se desmoronando, com as elites globalistas e ocidentalistas européias. É por isso que penso que estamos nos aproximando gradualmente de um confronto entre os partidários do unipolarismo e os partidários do multipolarismo.
O confronto decisivo está à nossa frente e não podemos dizer se vamos ganhar ou perder por duas razões muito importantes: se a Rússia e a China ganharem contra este último ataque lançado pelo moribundo poder ocidental atlantista americano, representado por Biden, isso significará que a ordem unipolar não existirá mais e que um novo status quo multipolar será formado. Mas guerra é guerra e não podemos saber quem vai vencer. Além disso, os Estados Unidos são muito fortes, apesar de sua proclamada decadência.
Poderia a Rússia representar um farol de liberdade no mundo, também através da transformação em práxis política da Quarta Teoria Política?
Espero que sim. A Rússia deve e pode ter esta função de um farol de liberdade. A Rússia não deve substituir a dominação americana impondo sua própria hegemonia, como fez durante a Guerra Fria, quando uma ordem bipolar estava em vigor. É muito importante que isso não aconteça. Esta é uma missão totalmente diferente.
Por exemplo, quando Putin se dirige à Europa, ele não está tentando convencê-la a se tornar pró-Rússia ou pró-América. Não é disso que se trata. Putin está propondo algo diferente.
Putin está propondo à Europa tornar-se pró-europeia.
O mesmo para o mundo islâmico, para o mundo chinês, para o mundo indiano. Essa é a proposta para um mundo multilateral.
Neste sentido, a Rússia poderia e deveria ser um farol de liberdade, mas desta vez de verdadeira liberdade, e não de uma liberdade oculta por trás da dominação russa, destinada a preencher o vazio criado pelo colapso da dominação norte-americana.
A Rússia, desta vez, está lutando sinceramente pela liberdade de outras civilizações, outras sociedades, outros países.
E esta é a diferença substancial entre o mundo bipolar e o mundo multipolar. Somente neste sentido, creio, é possível interpretar a locução “farol da liberdade”.
A Quarta Teoria Política, que estou desenvolvendo, é uma forma de se opor ao sistema dominante não através de recrudescências como o comunismo, o fascismo, ou o nacionalismo. Estas são formas políticas pertencentes à modernidade europeia.
A Quarta Teoria Política aceita todas as formas políticas possíveis fora da modernidade, dentro da modernidade, ocidentais, orientais, hierárquicas, democráticas, mas sem impor um paradigma rígido. Ela não quer dar a última palavra na lógica internacional e propõe a todas as sociedades, todas as religiões, todas as culturas, todos os povos a desenvolverem seus próprios conceitos de política.
A Quarta Teoria Política não é uma ideologia como era a ideologia liberal, comunista, fascista ou nacionalista.
É uma proposta para que os povos escolham o que é melhor para eles, fora de certas lógicas hegemônicas de poder, unindo forças além da modernidade política.
Não podemos reduzir todas as formas políticas ao liberalismo, ao comunismo, ao fascismo. Devemos lutar contra o liberalismo dominante e hegemônico, sem especificar nossa posição.
Após a vitória sobre o liberalismo, cada povo poderá escolher sua própria Teoria Política, baseada na religiosidade islâmica para o mundo muçulmano, na tradição como o mundo chinês ou indiano, na teoria bizantina da sinfonia de poderes como no caso da Rússia.
Além disso, todas as sociedades terão que se reorganizar com base em sua história, livres de qualquer dogmatismo.
É por isso que a Quarta Teoria Política é essencialmente anti-dogmática e pluralista.
É a luta comum para defender o princípio da autodeterminação dos povos.
Este é o significado de multipolaridade.
A Quarta Teoria Política é a teoria que está se desenvolvendo em paralelo com a teoria do mundo multipolar.
A Quarta Teoria Política é a filosofia política que corresponde à teoria do mundo multipolar.
Quanto tempo você acha que o bloco da UE e a América do Norte podem durar? Como eles esperam dominar o mundo, quando eles mesmos minaram os fundamentos da civilização que controlam (através de escolhas perversas como o lockdown, a ideologia politicamente correta, a economia verde), enquanto o bloco eurasiático (e também estados importantes como o Brasil), respeitando as diferentes autonomias nacionais e reivindicando o direito dos povos à autodeterminação, está adquirindo cada vez mais estabilidade e credibilidade?
Numa perspectiva mais ampla, não será possível para o bloco americano e europeu competir na luta com a multipolaridade emergente.
Creio, entretanto, que ainda não chegamos ao ponto de não retorno. O mundo unipolar, ou seja, os Estados Unidos e a elite liberal européia, tem muitos meios à sua disposição: tecnológicos, políticos, sociais, técnicos, científicos. É por isso que o futuro está aberto.
Não é possível dizer que os globalistas perderam e o bloco eurasiático ganhou.
Uma luta terrível está em curso.
Este não é um processo mecânico que nos permite conhecer os resultados antes do final.
Este é um processo histórico dramático que requer um esforço conjunto de todos os defensores da multipolaridade, sejam eles americanos ou europeus. Esta é uma grande guerra comum e depende dos italianos, dos trumpistas americanos, dos coletes amarelos, dos populistas de direita e de esquerda, dos muçulmanos, dos chineses. O resultado desta grande transição depende de todos nós.
Porque os globalistas não querem nos conceder a vitória. Eles farão de tudo para destruir e matar seu inimigo e isso é uma grande ameaça.
Estas não são apenas palavras, este é um momento muito sério e nós, que apoiamos a multipolaridade, podemos muito bem perder esta guerra. E precisamos entender este ponto para que nossa visão do futuro seja responsável e madura diante dos eventos que possam vir.