A definição de ethnos (etnose)
Em russo, o termo “ethnos” foi introduzido no uso científico por Sergei Mikhailovich Shirokogoroff (1887-1939), o grande etnólogo e fundador da etnologia russa, que influenciou o historiador, etnólogo e eurasianista russo Lev Nikolaevich Gumilev (1912-1992). Foi assim que Shirokogoroff definiu uma etnose:
Uma etnose é um grupo de pessoas que (1) falam a mesma língua, (2) reconhecem sua origem comum, (3) possuem um complexo de costumes, modos de vida e, preservados e santificados pela tradição, diferem dos costumes de outros grupos.
O critério de costumes, santificados pela tradição e diferentes dos de outros grupos, aponta muito claramente para o ethos. Ou seja, a presença de tradições específicas, costumes e mais substancia uma das principais definições de um ethos. Assim, uma base moral é um dos aspectos essenciais de uma etnose, que se baseia na unidade dos costumes, no sincronismo das valorações morais.
Recordemos a maravilhosa observação de Friedrich Nietzsche (1844-1900) em seu livro A Genealogia da Moral, no qual ele chama a atenção para o quanto os costumes de diferentes povos diferem uns dos outros. Para as etnias cristãs existem verdades como “ame seu próximo” e “não matarás”. Mas para os iranianos, por exemplo, a compreensão do que é ético é expressa de forma diferente: “Falar a verdade e atirar bem com flechas, eis a virtude persa”. Ou seja: diferentes etnoses têm diferentes ethos.
Na definição de Shirokogoroff, o complexo de costumes, modo de vida e tradições que caracterizam um determinado ethnos difere necessariamente daqueles de outras etnoses. Na própria definição de etnose e ethos está contida a ideia de uma pluralidade de etnoses e de uma pluralidade de ethos, costumes e morais. Por esta razão, a expressão “ethnos universal” é destituída de qualquer sentido, uma vez que não tem nada a opor a ela. Não há etnose universal. O ethnos é sempre concreto.
Pode-se falar de uma sociedade global como uma construção sociológica e política artificial, mas não é possível falar de um ethnos global. É teoricamente possível imaginar um socium como algo global e universal, mas uma etnose é sempre concreta e particular. No centro da etnose, como no centro da moralidade, está sempre a afirmação de um sistema específico de valores.
A unidade da linguagem é outra característica qualitativa do ethnos. As pessoas, falando uma língua, vivendo no mesmo sistema de sinais, sentidos e significados, traçam um terreno específico na esfera das ideias, costumes, psicologia e relações sociais, que as une e as integra ao longo de um traço cultural. O ethnos cria assim um mundo espiritual, todos os participantes do qual habitam em um espaço comum de significado.
Existe uma frase como “o mundo russo”. Ela descreve as fronteiras dentro das quais a comunicação na língua russa é possível. A língua, como disse Martin Heidegger, é “a casa do ser”. E esta casa é sempre étnica. A língua, o compartilhamento da língua, constitui a unidade de um terreno comum na esfera do espírito. Não é importante se este terreno pertence a um ou dois países, ou se as fronteiras políticas ou religiosas se situam entre etnoses. Se as pessoas falam e pensam em uma língua, então elas se encontram no espaço dessa estnose à qual a língua pertence.
Shirokogoroff falou do reconhecimento da etnose de sua origem comum. Uma comunidade de pessoas tem uma única origem ou não? Do ponto de vista da sociologia e da história, esta é uma questão muito difícil, pois quase sempre os povos, as culturas étnicas e as tradições se voltam para o tema de suas origens míticas. Platão, por exemplo, considerava-se um descendente do deus Poseidon.
Na origem de uma etnose está sempre o mito. Por exemplo, os tibetanos pensam que seus antepassados eram macacos vermelhos e por esta razão os tibetanos são aqueles que se consideram descendentes de macacos vermelhos. Cada povo tem seus primeiros antepassados na cultura, e o que é importante não é se este antepassado de fato existiu ou não: ninguém sabe. Algo mais é importante: como, com que grau de intensidade, a etnose está consciente e experimenta sua origem comum (seja ela puramente mitológica). Muitos que se dizem etnicamente “russos” são representantes de outros povos (na maioria das vezes indígenas) do império russo, e esta “russividade” forma uma etnose junto com a língua russa e um sentimento de pertencer à cultura russa.
A etnose como comunidade aberta
A realidade da semelhança genética das raízes da descendência não tem uma grande influência na autoconsciência étnica. Por esta razão, Shirokogoroff não fala de uma comunidade de pessoas “tendo uma origem comum”, mas especificamente de seu “reconhecimento”. Em outras palavras, o ethnos, como aparece da definição de Shirokogoroff, é, em grande medida, uma questão de escolha. Pode-se mudar os etnoses, porque tendo reconhecido uma origem diferente, expressado lealdade a diferentes primeiros-ancestrais, começado a falar em uma língua diferente e participado de outros rituais e costumes, uma pessoa executa um ato de transgressão étnica, passa de uma etnose para outra.
Se uma pessoa reconhece a descendência de um primeiro-ancestral, um macaco vermelho, professa a tradição budista, aprende tibetano, instala-se no Tibete e gira a roda de orações budistas, então, do ponto de vista do ethnos, ele é tibetano, mesmo que isso tenha acontecido depois que ele completou um curso de Sociologia na Universidade Estadual de Moscou e partiu para uma expedição de estudos etnológicos e religiosos, decidindo nunca mais voltar dele.
Uma pessoa pode se integrar a uma etnose. O ethnos é um campo aberto. Mesmo a etnose mais fechada e hierárquica tem caminhos, costumes e cenários normativos para se integrar a ele. É possível entrar em uma etnose.
Imaginemos uma situação em que os membros de uma etnose perderam uma criança pequena na floresta, e os membros de outra o encontraram, tiveram pena dele, e o levaram para dentro do seu grupo, depois do que ele se tornou um membro dessa etnose. Sua identidade étnica será formada no novo ethnos, ao qual ele pertence.
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O eminente etnosociólogo e pesquisador do ethnos, Lev Nikolaevich Gumilev, foi de um lado um seguidor de Shirokogoroff e, de outro, um adepto da escola filosófica e culturológica eurasianista. Nikolaevich se intitulava “o último eurasianista “. Poucos deram uma contribuição tão significativa para o estudo do ethnos e para a popularização dos conceitos “etnose” e “etnicidade” como fez Gumilev.
As abordagens de Gumilev e Shirokogoroff sobre o ethnos podem ser consideradas tendências no âmbito de uma escola, que (em contraste com a abordagem marxista clássica) pensa na etnose como uma “unidade orgânica, vital”. Ela trata a etnose como um ser vivo, um coletivo, distinto do indivíduo separado, grande e vivendo em um longo período de tempo. Uma pessoa é limitada por seu corpo, mas as possibilidades de uma etnose são muito mais amplas: ele pode produzir muitos corpos diferentes. No entanto, assim como com uma pessoa viva, segundo Gumilev, a etnose tem um começo, uma ascensão, maturidade, um declínio e velhice. As vidas e os destinos da etnose são compostos de tais ciclos.
Nota do Tradutor
A escolha por usar dualmente os termos ethnos e etnose deriva da utilização de ethnos quando abordando o conceito de modo universal e abrangente, com etnose servindo ao propósito de sua aplicação particular.
Fonte: DUGIN, Alexander. Ethnosociology: the foundations. Londres: Arktos, 2019, p 9-13 (e-book).
Tradução: Augusto Fleck