Mohammed Al-Julani, Líder da Insurreição Anti-Assad: Um “Radical Pragmático”?

20.12.2024
Ex-membro da Al-Qaeda, ex-membro do ISIS, o líder do Tahrir al-Sham que assumiu o controle de Damasco passou por uma repaginação com o objetivo de mostrar uma face “amistosa” para o mesmo takfirismo de sempre.

Abu Mohammed al-Golani, o líder militante cuja insurgência relâmpago derrubou o presidente sírio Bashar al-Assad, passou anos reformulando sua imagem pública, rompendo com antigos vínculos com a Al-Qaeda e se apresentando como um defensor do pluralismo e da tolerância. Nos últimos dias, os apoiadores da “rebelião” abandonaram seu nome de guerra para começar a chamá-lo por seu nome verdadeiro, Ahmad al-Sharaa.

Os insurgentes agora controlam Damasco, enquanto o ex-presidente sírio se refugiou na clandestinidade em Moscou, encerrando mais de 50 anos de domínio do clã Assad. A questão de como a Síria será governada permanece em aberto. Como muitos países da região, a Síria abriga múltiplas comunidades étnicas e religiosas, frequentemente colocadas umas contra as outras. A minoria alauíta, à qual pertence o clã Assad, continua sendo um alvo privilegiado dos Irmãos Muçulmanos. Estes últimos, fortemente reprimidos pelo clã do ex-presidente sírio, especialmente nos anos 1980, durante a repressão em Hama após a tentativa de insurreição islâmica na Síria, guardam uma memória viva desses eventos. Soma-se a isso um país fragmentado entre facções armadas diversas e a pressão de potências estrangeiras, da Rússia ao Irã, passando pelos Estados Unidos, Turquia e, claro, Israel, todas envolvidas no conflito.

O novo homem forte do país, Mohammed al-Julani, de 42 anos, “segundo emir” da Hay’at Tahrir al-Sham (HTS) ou “Organização para a Libertação do Levante”, criada em 2017 e classificada como terrorista por vários serviços de inteligência, incluindo os americanos desde 2013, não apareceu publicamente desde a queda de Damasco, no início do domingo. Mas ele e sua força insurgente HTS — composta por muitos combatentes jihadistas — estão prestes a se tornar um ator de peso.

Durante anos, Al-Julani esforçou-se para consolidar seu poder enquanto estava confinado na província de Idlib, no noroeste da Síria, e Assad, apoiado pelo Irã e pela Rússia, parecia sólido na maior parte do país.

Além das manobras entre organizações terroristas, eliminando concorrentes e antigos aliados, Al-Julani lançou uma campanha de “desdemonização”, melhorando a imagem de seu “governo de salvação” de fato, que administra Idlib, para convencer governos internacionais e tranquilizar as minorias religiosas e étnicas da Síria. Nesse percurso, Al-Julani abandonou as vestes de guerrilheiro islamista radical e passou a usar ternos em entrevistas à imprensa, falando sobre a construção de instituições estatais e a descentralização do poder para refletir a diversidade da Síria.

“A Síria merece um sistema de governo institucional, e não um sistema em que um único líder tome decisões arbitrárias”, declarou em entrevista à CNN na semana passada, mencionando a possibilidade de o HTS ser eventualmente dissolvido após a queda de Assad. “Não julguem pelas palavras, mas pelos atos”, acrescentou.

Um histórico marcante

Os vínculos de Al-Julani com a Al-Qaeda remontam a 2003, quando ele se juntou aos combatentes contra as tropas americanas no Iraque. Sírio de origem, nascido na região das Colinas de Golã, de onde sua família foi deslocada após a ocupação israelense em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias, ele foi preso na época pelo exército americano, mas permaneceu no país. Mesmo com o término oficial da Segunda Guerra do Iraque em 2011, a presença americana no país não impediu a Al-Qaeda e outros grupos de se estabelecerem na região e formarem o Estado Islâmico do Iraque, liderado por Abu Bakr al-Baghdadi.

Em 2011, uma revolta popular contra Assad na Síria, semelhante ao que aconteceu na Líbia, Egito e outros “primaveras árabes”, desencadeou uma repressão brutal por parte do governo, levando a uma guerra total. A importância de Al-Julani aumentou quando Abu Bakr al-Baghdadi, líder do Estado Islâmico, o enviou para a Síria para estabelecer um braço da Al-Qaeda, o Front al-Nusra.

Em 2012, a guerra civil síria intensificou-se, assim como as ambições de Al-Julani. Com seu grupo, presente principalmente no noroeste da Síria, mas também no Líbano, ele eliminou a concorrência. Rapidamente, os Estados Unidos classificaram o Front al-Nusra como uma “organização terrorista”, designação que permanece em vigor. Relutante em fundir-se para formar o Estado Islâmico no Iraque e no Levante em 2013, a organização de Al-Julani jurou lealdade diretamente à Al-Qaeda, que a designou como seu braço sírio, antes de romper o vínculo de comum acordo em 2016. Nesse mesmo ano, Al-Julani revelou seu rosto pela primeira vez em uma mensagem de vídeo anunciando que seu grupo passaria a se chamar Jabhat Fateh al-Sham (Frente para a Conquista da Síria), cortando seus laços com a Al-Qaeda.

Uma forma eficaz de eliminar ainda mais a oposição armada síria a Assad. Já em 2014, em uma entrevista, Al-Julani, com o rosto mascarado, declarou ao canal catariano Al-Jazeera que rejeitava as negociações políticas de Genebra para encerrar o conflito, acrescentando que seu objetivo era ver a Síria governada pela lei islâmica e que não havia espaço para as minorias alauítas, xiitas, drusas e cristãs no país. Lentamente, mas com segurança, Al-Julani garantiu o controle total dos grupos islamistas da região, fundindo-se com uns ou eliminando outros, consolidando seu poder na província de Idlib, no noroeste da Síria.

Uma vez consolidado seu poder, Al-Julani iniciou uma transformação midiática de alto nível. Ele fez vários apelos à tolerância religiosa e ao pluralismo, especialmente à comunidade drusa de Idlib, que o Front al-Nusra havia alvejado repetidamente, e visitou as famílias de curdos mortos por milícias apoiadas pela Turquia. Em 2021, Al-Julani concedeu sua primeira entrevista a um jornalista americano, no canal PBS. Vestido com um blazer e com o cabelo curto penteado para trás, o líder do HTS, agora mais discreto, declarou que seu grupo não representava uma ameaça ao Ocidente e que as sanções impostas contra ele eram injustas. “Sim, criticamos as políticas ocidentais”, afirmou. “Mas é falso dizer que queremos travar uma guerra contra os Estados Unidos ou a Europa a partir da Síria. Não dissemos que queríamos lutar.”

Apesar do otimismo de muitos observadores e jornalistas ocidentais, o fim do poder de Bashar al-Assad se assemelha mais a um novo ato de uma peça de teatro geopolítica mal escrita.

Os próximos acontecimentos na Síria prometem ser desafiadores…

Fonte: Éléments

Tradução de Raphael Machado