As Estranhezas da Geórgia Pós-Soviética

03.06.2024

Recentemente ao escrever sobre a tentativa de golpe na República Democrática do Congo, me deparei com a informação peculiar que o empresário/golpista Christian Malanga havia sido treinado como ongueiro nesses programas de "jovens líderes" na Geórgia - e que a sua esposa ainda vivia ali.

Depois, parei para refletir e percebi quantas coisas estranhas das relações internacionais dos últimos anos têm tido algum vínculo com a Geórgia.

A história do que hoje se entende como Geórgia e de suas etnias é absolutamente dependente da realidade específica de sua geografia. O Cáucaso é uma região de transição continental e, portanto, de choques e fusões culturais e demográficas - mesmo enquanto é simultaneamente uma formidável barreira.

A população, que parece ser uma das poucas populações paleo-europeias a permanecer relativamente autônoma, se divide em diversas tribos, etnias e idiomas, e mesmo na Antiguidade esteve sempre dividida em dois reinos, Colchis e Ibéria.

Com os desdobramentos políticos planetários, porém, os georgianos se viram palco das disputas entre Roma, Armênia e Ponto; depois entre Roma e Pérsia; depois entre Bizâncio e Seljúcidas, já com uma Geórgia independente unificada pela primeira vez - o que dura apenas 400 anos, e então o país se fragmenta de novo, virando palco de disputas entre Turquia e Pérsia, com a Rússia depois também se interessando pela região e, eventualmente, absorvendo-a no início do século XIX.

Uma história conturbada, conflitos internos, sectarismos e o caráter de zona cinzenta para conflito entre grandes potências não são novidade para a Geórgia, mas as décadas recentes acrescentaram tantos elementos que a Geórgia parece ser um laboratório ambulante.

Sem a tutela russo-soviética, a região voltou a espiralar em conflitos internos. O Estado georgiano concedeu maior autonomia para algumas regiões, recusando-a a outras, como a Ossétia (região de maioria alana/osseta, povo de raízes indo-europeias). Situações do tipo levaram a Geórgia a perder a Abecázia e a Ossétia.

Como parte da estratégia atlantista de cordão sanitário ao redor do Heartland para destruir a Rússia, os EUA se aproximaram da Geórgia e começaram imediatamente a despejar toneladas de dinheiro no país - tanto para o governo e Forças Armadas quanto para a "sociedade civil" (ONGs).

Nessa época, a Geórgia não tinha qualquer restrição à atuação de ONGs, e na virada do milênio havia ao redor de 4 mil ONGs atuando no país, muitas das quais pagavam salários muito acima dos recebidos pelos trabalhadores georgianos. Apesar do presidente Shevardnadze ser pró-ocidental, seus vínculos com a máfia e a total incapacidade de gerir o país fizeram o Ocidente cortar o dinheiro para Tblisi e despejar ainda mais dinheiro nas ONGs.

Nas eleições de 2003 logo aparecem acusações de fraude eleitoral, manejadas pelas ONGs financiadas por Soros, como a Kmara, que, treinadas na metodologia usada na Sérvia (pela Otpor), mobilizam parte da população urbana ocidentalizada pela derrubada do governo. É a "Revolução Rosa", uma das primeiras revoluções coloridas, que leva Mikhail Saakashvili ao poder.

Saakashvili, educado nos EUA e França, imediatamente solicita assessoramento da USAID e realiza as típicas reformas neoliberais, vendendo empresas estatais, facilitando a especulação, etc. Sob promessas de ingressar na OTAN e UE, a Geórgia então ataca a Ossétia do Sul, sendo derrotada militarmente pela Rússia. Saakashvili é, então, derrotado nas eleições de 2012.

Por enquanto temos apenas a história de um típico país ex-soviético instrumentalizado pelo Ocidente contra a Rússia em troca de falsas promessas. Mas a partir daí as peculiaridades se multiplicam.

Investigado por corrupção em sua pátria, Saakashvili foge para a Ucrânia no imediato pós-Maidan, onde ele vira assessor do presidente Petro Poroshenko, chegado ao poder por meio de golpe apoiado pela CIA. Ele rapidamente recebe uma cidadania ucraniana e, então, é nomeado governador de Odessa.

Mas ele cai em desgraça em 2 anos, suspeito de querer governar a Ucrânia. Poroshenko então revoga a sua cidadania e ele foge para a Polônia. Zelensky restaura a sua cidadania ucraniana assim que chega ao poder, mas Saakashvili parece estar mais interessado, de novo, na Geórgia.

Os anos seguintes são ocupados por seu conflito com o Estado georgiano para que ele seja julgado por seus crimes no governo. E no final de 2023 ele é também acusado de conspirar com o governo ucraniano e com a Legião Georgiana (o grupo de terroristas georgianos que combate na Ucrânia) para derrubar o governo georgiano.

Agora, o curioso é que ele não é a única liderança georgiana que parece seguir esse modelo. Boa parte dos conflitos de Saakashvili são com a atual presidente da Geórgia, Salome Zourabichvili.

Salome, porém, é de cidadania francesa, ainda que etnicamente georgiana. Nasceu na França, estudou na França, indo depois para os EUA, onde foi tutorada por Brzezinski, diretor da Comissão Trilateral. Ela, então, volta para França onde vira burocrata estatal e diplomata do MRE. Ela vai parar na Geórgia, como embaixadora francesa...até que é simplesmente selecionada Ministra de Relações Exteriores por Saakashvili.

Fácil assim. Como se pode dizer que a Geórgia é um país soberano nessas condições? Imaginem o absurdo que seria tornar alguém que trabalhou por décadas como burocrata de um Estado estrangeiro como ministra de uma das partes mais estratégicas do próprio país. Salome, que tem um nome extremamente apropriado, é hoje a principal inimiga da Lei Anti-ONG da Geórgia. O que é perfeitamente, natural. Ela é, ainda, uma agente dos interesses ocidentais na Geórgia.

As estranhezas da Geórgia não param por aí.

O problema dos biolaboratórios ocidentais tornou-se tema discutido internacionalmente após a operação militar especial na Ucrânia, mas as denúncias sobre o tema vêm de muitos anos antes, e a Geórgia parece ainda mais implicada que a Ucrânia.

De fato, o maior complexo do tipo dos EUA no exterior é o Centro Lugar, na Geórgia, um biolab de segurança máxima acessível apenas a cidadãos estadunidenses, e cujos funcionários possuem imunidade diplomática, mesmo quando são apenas terceirizados da Metabiota (a mesma da polêmica do Hunter Biden), CH2M Hill e da Battelle.

No Centro Lugar, segundo documentos públicos, os EUA fazem experimentações com antraz, tularemia, febre hemorrágica, e por aí vai. A Battelle, especificamente, tem um histórico de envolvimento em programas de armas biológicas dos EUA entre os anos 50-60, segundo documentos já abertos, e opera também laboratórios do Pentágono na África.

Desde então, inúmeras epidemias estranhas surgiram na Geórgia ou na Rússia, perto da fronteira georgiana. O mosquito tropical Aedes aegypti, por exemplo, surgiu se proliferando repentinamente na Geórgia, depois do anúncio de um programa do Centro Lugar de pesquisas sobre insetos.

Na mesma época, período de 2013-2017, a Geórgia também viu um surto repentino de antraz supostamente "natural", com o Centro Lugar imediatamente anunciando experimentações com uma vacina nos habitantes locais. Também no mesmo período, subitamente os georgianos se viram preocupados com um surto da febre hemorrágica Crimeia-Congo.

Hoje a Geórgia se vê em um conflito civil interno pelo interesse de parte de suas elites em limitar a influência das ONGs, enquanto outra parte de suas elites quer garantir que os fluxos de financiamento das ONGs sigam livres.

Em mais um episódio do "Além da Imaginação" das relações internacionais contemporâneas, embaixadores de vários países ocidentais foram vistos protestando nas ruas de Tiblisi junto com as típicas adolescentes de cabelo colorido das manifestações, algo inconcebível na maior parte do mundo.

Na Geórgia, porém, aparentemente tudo é possível.