Elogio da Fronteira, Crítica do Muro

16.10.2024
O filósofo Diego Fusaro apresenta as suas reflexões sobre a figura da “fronteira” e a figura do “muro” como diferentes maneiras de lidar com o Outro.

Permita-nos recordar brevemente a célebre passagem do monumental texto Ab Urbe Condita, em que Tito Lívio narra a fundação de Roma. Como é sabido, ele a apresenta como o resultado de um fratricídio cometido para punir a violação de uma fronteira materializada em forma de muro. Sic deinde, quicumque alius transiliet moenia mea (“Assim acabará a partir de agora qualquer outro que ultrapassar meu muro”), são as inequívocas palavras de advertência pronunciadas por Rômulo após matar seu irmão. A expressão em latim moenia nos remete aos “muros construídos” que não podem ser escalados, assaltados ou, de qualquer maneira, ultrapassados: Remo é assassinado não porque atravessou uma fronteira, mas porque transpassou um muro. O poder soberano regula a passagem pelas fronteiras e proíbe transpor os muros. Estes últimos – como ensina o trágico acontecimento fundacional de Roma – acabam destruindo a relação com o Outro em sua forma mais íntima e indissolúvel, representada pelo vínculo entre os dois irmãos.

Em um cenário distinto, os próprios muros de Troia, em última instância, decretam seu ocaso. Eles marcam o círculo da vida e da fertilidade, encerrado dentro dos limites protegidos do espaço urbano que, por nove anos, resistiu ao cerco das tropas aqueias. Mas esse limite, rígido e endurecido em sólidos muros, acaba por matar a própria vida, transferindo o campo de batalha do exterior para o interior: fora dos muros, para os troianos, não há outra vida com a qual se relacionar, apenas “guerra e morte” (πόλεμος e θάνατος).

É a paradoxa ligada à lógica da imunização, tal como a biopolítica contemporânea a abordou em suas principais atribuições de sentido: exposta em sua formulação mais simples e imediata, a paradoxa reside no fato de que, se alguém não se imuniza, morre; mas, ao mesmo tempo, enfrenta um destino análogo se se imuniza em excesso. A ausência de imunização e a hiperinmunização são igualmente letais, ainda que de formas diametralmente opostas. Isso também é válido no contexto específico da fronteira, sempre oscilante entre a tentação hiperinmunizante do muro e a tentação anti-imunitária de uma abertura sem regras nem controle. A arte da vida e das políticas a ela vinculadas deveria, consequentemente, ser a busca de um equilíbrio delicado, de um limite justo – e, portanto, de uma fronteira – que permita que a imunização funcione com eficácia, sem se transformar em um dispositivo mortal para o corpo que justamente deveria proteger.

No caso da Ilíada, a linha do limite se materializa nas fortificações troianas: onde existe um muro defensivo, pressupõe-se que tudo o que está além desse muro pode ser um possível inimigo, uma ameaça da qual se imunizar, e não uma alteridade com a qual se relacionar. O muro é o primeiro que desde sempre combate contra o inimigo que, nesse contexto, é “o exterior” como tal, percebido e rejeitado como um presságio de desgraça para o Eu. O limite justo se perverte assim na solidão de uma civilização que, ao se fechar, definha e, finalmente, morre. O dispositivo imunitário degenera em um instrumento fatal que asfixia aquilo que deveria salvaguardar. O muro, embora no caso de Troia se justifique como bastião de resistência contra um agressor impiedoso, acaba se tornando uma arma contra quem o utiliza: a exclusão do Outro se transforma em segregação de Si mesmo. Também aqui reside a paradoxa: ao trancar o Outro, trancamos a nós mesmos.

O Outro não é realmente conhecido em sua identidade, mas simplesmente combatido em sua alteridade: a relação está desde sempre negada pelo muro. Por isso, na famosa passagem da Ilíada (III, vv. 121-244) dedicada à “teioscopia” – ou seja, literalmente, a “observar” (σκοπεῖν) do “muro” (τεῖχος) – Helena, convocada por Príamo, ajuda o ancião a identificar de cima, um a um (de Agamenon a Odisseu, de Ájax a Idomeneu), os heróis aqueus prontos para o combate. Os troianos não conhecem os aqueus, e o único meio de revelar sua identidade, negada pelo muro, é confiar-se a um olhar que ultrapasse o próprio muro e provenha de uma identidade – a de Helena – que é, na verdade, diferente da do campo troiano.

Em contraste com a fronteira, que cumpre uma função de limiar relacional, o muro se baseia em uma lógica que poderíamos genericamente definir como disjuntiva. Sua característica essencial consiste em separar, não para favorecer uma relação entre diferentes, mas para impedi-la: a parede muralhada desempenha sua função fundamental ao garantir que os separados permaneçam como tal. Assim, o muro, contrariamente ao que se tende a pensar inercialmente, não pode ser entendido de forma alguma como uma fronteira entre tantas, nem como uma de suas formas sui generis, nem, mesmo, como uma fronteira elevada à sua máxima potência através de sua verticalização material. Em extrema síntese, pode-se afirmar que os muros isolam, enquanto as fronteiras relacionam.

Analisado em sua pura objetualidade, o muro verticaliza a fronteira, projetando-a para o céu; e, por sua vez, a materializa, tornando-a intransponível pela impenetrável solidez da pedra. Em virtude da dupla determinação de materialização e verticalização, o muro pode fragmentar concretamente o espaço segundo uma lógica disjuntiva. Esta forma se expressa, em sua figura mais imediata, na antítese intransponível entre o aquém e o além. A partir dessa perspectiva, torna-se mais fácil entender que uma característica imprescindível do muro é sua ambivalência estrutural, intrinsecamente conectada com o poder disjuntivo que o distingue: a perspectiva muda radicalmente dependendo do ponto de vista a partir do qual se observa o muro, que pode parecer protetor para aqueles que estão aquém, ou excludente para aqueles que estão confinados além. Assim como divide o território em dois, o muro também quebra dualmente a visão das coisas. Por essa via, o muro se reafirma como fruto de uma dialética oposicional não resolvida entre Amigo e Inimigo.

A fronteira carrega consigo, como sua especificidade ineludível, a duplicidade de delimitar e atravessar, de separar e unir. Se essa duplicidade intrínseca for rompida, a fronteira perde seu sentido, assim como sua lógica. Nesse caso, ocorre a unilateralidade do confinamento murado quando a dinâmica de separação prevalece; por outro lado, se a tendência de atravessar prevalece, ocorre a univocidade da invasão. Sob essa perspectiva, o muro permite compreender melhor, por contraste, a função da fronteira, que não é ser um espaço de bloqueio, mas de transição, onde – escreve Sandro Mezzadra – “forças e sujeitos diferentes entram em relação, se enfrentam e se encontram, em todo caso colocando em jogo e modificando sua própria identidade”.

Para esclarecer de um ponto de vista diferente a relação entre muro, invasão e fronteira, pode ser útil uma referência impressionista à dimensão biológica. Sabemos que a célula dos organismos vivos é delimitada por uma finíssima membrana plasmática. Esta separa a célula do ambiente externo e regula a troca de elementos e substâncias químicas. Sem a membrana, a célula seria sobrecarregada pelo ambiente externo e não poderia existir como um ente limitado em si. De maneira análoga, se a membrana fosse impenetrável, impedindo a relação entre o interior e o exterior, a célula não sobreviveria. Seguindo essa analogia, a fronteira aparece como uma membrana porosa que defende a vida justamente porque não permite que se dissolva na alteridade e, ao mesmo tempo, possibilita seu constante intercâmbio com a alteridade.

Um discurso similar pode ser feito em relação à pele que recobre o corpo, sendo, por assim dizer, a fronteira porosa que regula as relações do corpo com o exterior. Como sugeriu Debray em Elogio das Fronteiras, “a pele está tão distante da ideia de uma cortina impermeável quanto uma fronteira digna desse nome está de um muro. O muro impede a passagem, a fronteira a regula”, por meio de um movimento duplo que podemos aproximar da alternância de sístole e diástole.

Como já mencionado, o quid proprium da fronteira como Grenze é sua atravessabilidade, isto é, o caráter de uma porta que se fecha e, ao mesmo tempo, se abre ao Outro-de-Si. A fronteira é um limite negociável que, sob certas condições, pode ser cruzado. É uma porta que separa, mas também se abre: e se abre na forma de uma abertura sujeita a regras, permitindo que os separados se relacionem sem deixar de estar separados e, portanto, sendo cada um, Si mesmo. Por outro lado, dada sua fisicalidade compacta, o muro encontra na intransponibilidade sua essência fundamental: ele fecha e separa de forma incondicional e inegociável.

Materializando uma fronteira preexistente, o muro a torna tão potente a ponto de levá-la ao extremo, na forma de uma porta infranqueável; com isso, a fronteira é reforçada de modo paroxístico, até ser – paradoxalmente – anulada em sua essência. Sob essa ótica, o muro poderia ser entendido, com razão, mais como uma fronteira que, ao ser materializada, se despoja de suas prerrogativas fundamentais. E, dessa forma, nega sua própria essência, transformando-se em outra coisa.

A fronteira, enquanto limite imaterial que permite uma travessia regulada, é requisito de toda relação possível entre identidade e alteridade: é condição sine qua non para que o Outro seja Outro (estrangeiro, em termos políticos) e para que o Eu seja Eu-mesmo (cidadão, em chave política), mas também para que entre as duas partes haja uma relação, uma troca, um reconhecimento. A elevação de um muro petrifica em oposição incondicional, definitiva e não negociável a diferença entre identidade e alteridade, entre cidadão e estrangeiro, entre Si e Outro-de-si.

É necessário, portanto, voltar a questionar a definição primariamente fornecida do muro como materialização de uma fronteira. Tal definição, à luz do que foi dito, deve ser reformulada da seguinte maneira: o muro materializa a fronteira e, ao fazê-lo, não a realiza de forma aprimorada, mas a aniquila em sua essência.

A bilateralidade da fronteira, sua porosidade, seu caráter negociável e atravessável, sua capacidade de fechar abrindo e de abrir fechando, mas também sua essência de porta que se abre para uma parte e para a outra, delimitando-as e colocando-as em relação de reconhecimento segundo suas próprias especificidades e de acordo com um nexo potencialmente pacífico e horizontal; tudo isso é neutralizado pelo muro que, simplesmente, de forma materialmente definitiva e inegociável, fecha sem abrir, coloca as partes em uma relação de mútua exclusão e, com a verticalidade de sua estrutura, hierarquiza uma relação entre elementos que se presume não devem se comunicar. Com o muro, «a fronteira se esclerotiza, torna-se hermética», perdendo aquela porosidade que é seu traço essencial. Se é verdade que, enquanto porosa, a fronteira define as identidades colocando-as em relação entre si, o muro se confirma como o φάρμακον (“veneno”) que mata a fronteira precisamente quando tenta protegê-la.

Se –como explica Debray– «uma fronteira reconhecida é a melhor vacina contra a epidemia dos muros», também é certo que a epidemia dos muros destrói as prerrogativas da fronteira que é, além disso, uma determinação mais específica do limite. Poderíamos, em síntese, definir a fronteira como o limite controlado ativamente ou, também, como a porta que regula expressamente a passagem e a troca entre as duas partes divididas por ela. O limite se fundamenta estruturalmente na ideia de “cum-finis” (limite, confim, borda, fronteira), separa dois entes no próprio ato de colocá-los em relação. Ainda hoje, se observarmos bem, as zonas fronteiriças exibem seu caráter de lugares de «contato» e, portanto, de convivência dos diferentes, separados e, ao mesmo tempo, colocados em comunicação pela própria fronteira.

Isso é o que também nos sugere, entre outras disciplinas, a antropologia. Fredrik Barth –a quem devemos a tematização do conceito de “fronteira étnica” (ethnic boundary)– afirmava em sua obra Ethnic Groups and Boundaries (1969) que toda fronteira é uma «fronteira dupla», porque duas realidades estão unidas e separadas por sua presença. Através da prática da «produção social da diferença cultural» –explica Barth– a “fronteira étnica” permite que um grupo desenvolva uma autodefinição clara, que possibilita a seus membros interagir com os membros de outros grupos que se autodefinem de maneira diferente; e isso para garantir que a própria identidade seja o eixo dessa troca e dessa relação entre grupos, que não poderia ocorrer na ausência da “fronteira étnica”, assim definida, entre grupos diferentes.

Isso significa que a fronteira, ao me fazer ser “o que sou” por comparação e distinção com “o que não sou”, é já por sua essência uma forma de compartilhamento do mundo entre identidades relacionais. Assim entendido, o cum-finis coincide com o ponto em que Eu toco o não-Eu, o Outro-de-mim; assim como a pele do nosso corpo coincide com o ponto em que toco e sou tocado e, portanto, no qual o Eu e o Tu se encontram, analogamente a fronteira é o espaço por definição de encontro e não de oposição, de conjunção e não de disjunção. A verdade é que não pode haver contato além do espaço da separação, sem o qual, de fato, não há contato, mas o idêntico indiferenciado. Em sua definição mais geral, a realidade poderia ser entendida como a relação dos seres entre si, unidos como partes de uma única realidade precisamente porque estão separados e em contato entre eles. As fronteiras são, da mesma forma, o que separa e une toda a humanidade: as separa distinguindo-as em suas culturas, e as une como relação entre as diferenças que juntas formam a totalidade diferenciada do gênero humano.

Como destacou Nancy, se concebida corretamente e, portanto, distinguida adequadamente do muro, a fronteira não é uma barreira que exclui e pela qual o outro é murado, ficando ao mesmo tempo murado a si próprio: é, au contraire, o que torna possível aquela continuidade e aquela proximidade de estar ao lado do Outro e com o Outro, expressa pelo “cum” – do cum-finis (fronteira) – como força unitiva. Se a lógica do muro é disjuntiva em sua forma paroxística, a da fronteira – apesar de sempre arrastar consigo a possível tentação do muro -, é uma lógica unitiva através do diálogo, e uma lógica de proximidade através da diferenciação.

A linguagem popular e o senso comum podem nos ajudar. Diz-se proverbialmente que “as boas fronteiras fazem bons vizinhos”, porque são fruto de uma vontade compartilhada e de um reconhecimento mútuo. De forma diametralmente oposta, os muros quase nunca geram uma boa vizinhança. Pelo contrário, atestam que as relações entre vizinhos são qualquer coisa menos idílicas. De fato, se a fronteira fosse reconhecida bilateralmente, qual seria a necessidade de erguer um muro para enfatizá-la e torná-la intransponível? Precisamente nisso reside uma diferença ulterior entre a lógica da fronteira e a do muro: a primeira, precisamente porque é reconhecida biunivocamente pelas duas partes que divide, pode ser atravessada respeitando certas regras. O segundo, no entanto, geralmente estabelecido de forma unilateral, não pode ser atravessado e reafirma uma relação de hostilidade com a outra parte.

Fonte: PosModernia