Argentina: A Terapia de Choque e seus Obstáculos
Desvalorização do peso
Anteriormente, como parte da política do governo, o ministro da Fazenda, Luis Caputo, anunciou em 12 de dezembro uma desvalorização de 54% do peso argentino e um programa de austeridade fiscal. Essas medidas têm como objetivo conter a hiperinflação (143% em relação ao ano anterior) e o déficit fiscal (5,5% do PIB), que o ministro identificou em seu discurso de posse como as principais causas dos problemas econômicos da Argentina. O Sr. Caputo também apontou a grave falta de moeda estrangeira, repetindo as palavras frequentemente repetidas “Não há dinheiro” na narrativa da nova administração.
A decisão do ministro da Fazenda foi bem recebida pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), ao qual a Argentina deve US$ 44 bilhões. US$ 44 bilhões (apoiada pela porta-voz do FMI, Julie Kozack) e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), cujo presidente, Ilan Goldfajn, expressou seu apoio. O Ministro L. Caputo declarou com satisfação que a Argentina deve tratar não os “sintomas” (o déficit orçamentário), mas as “causas” (“o vício da Argentina no déficit”).
O novo chefe do Ministério da Economia pretende reduzir o volume de gastos públicos para o equivalente a 2,9% do PIB, reduzindo os subsídios ao transporte e à energia, minimizando as transferências federais para as províncias, cortando os benefícios sociais e as pensões, reduzindo o número de ministérios de 18 para nove e de departamentos ministeriais de 106 para 54, e abolindo as licitações de obras públicas, que L. Caputo identificou como uma das principais fontes de corrupção.
De acordo com o novo inquilino do Palácio do Tesouro, espera-se que a desvalorização do peso aumente a lucratividade das exportações (e, portanto, a produção) e a quantidade de dólares americanos na economia. A Argentina também aumentará temporariamente os impostos de importação e manterá a alíquota atual sobre as exportações não agrícolas, o que deverá igualar a carga tributária de todos os setores da economia e acabar com a discriminação contra o setor agrícola.
As licenças de importação do governo serão revisadas e, por fim, os impostos de exportação que, de acordo com L. Caputo, prejudicam a agricultura argentina, serão abolidos. Para minimizar os custos sociais imediatos da terapia de choque, o valor dos cartões de alimentação do governo (Tarjeta Alimentar) será aumentado em 50% e os benefícios para crianças (Asignación Universal por Hijo) serão dobrados, beneficiando os 40% da população argentina que vivem na pobreza.
Na quarta-feira, 13 de dezembro, o presidente do Banco Central da Argentina (BCRA), Santiago Bausili, nomeado por L. Caputo, anunciou medidas de política monetária, taxa de juros e dívida. O presidente J. Milei havia indicado anteriormente como prioridade a liquidação do Leliq, o instrumento de dívida de curto prazo do BCRA denominado em pesos.
Decreto de emergência
Na quarta-feira, 20 de dezembro, o presidente J. Milei assinou o “Decreto de Necessidade e Urgência” (DNU), que introduz uma ampla desregulamentação da economia argentina em 366 reformas detalhadas. O presidente anunciou a assinatura do decreto em um discurso televisionado, cercado por membros de seu gabinete. Ele enfatizou que seus antecessores o haviam deixado com um Estado sobrecarregado e inflacionário. O decreto tem como objetivo reduzir os fatores inflacionários, limitando o papel do Estado argentino na economia.
As empresas estatais serão privatizadas, os setores econômicos serão desregulamentados e os controles de preços serão abolidos. Deve ser um plano de estabilização que inclua o ajuste fiscal, o alinhamento das políticas cambiais com as taxas de câmbio reais e uma política monetária que reforme o banco central. O Sr. Milei, portanto, voltou atrás em seus anúncios de campanha eleitoral sobre a abolição do BCRA.
As medidas preliminares incluem a preparação de empresas estatais para a privatização, a desregulamentação dos setores de turismo e de acesso à Internet via satélite, a revogação de leis que regulam o aluguel de imóveis, o setor de mineração, os preços das commodities, o comércio de terras, bem como a reforma do código alfandegário para intensificar o comércio exterior, as reformas da saúde e o código civil e comercial.
A DNU inclui a companhia aérea estatal Aerolíneas Argentinas entre as empresas cuja propriedade deverá ser transferida, no todo ou em parte, para entidades privadas (2). Há preocupações de que a equipe de J. Milei possa privatizar a empresa estratégica Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF S.A.), que controla a exploração dos depósitos de lítio do país (3).
Obstáculos políticos e legais
Os Decretos de 12 e 20 de dezembro permanecerão em vigor até sua possível revogação por ambas as câmaras do Congresso Nacional: a Câmara dos Deputados, com 257 membros (onde o partido presidencial La Libertad Avanza tem 38 deputados – 15% dos assentos) e o Senado, com 72 membros (onde La Libertad Avanza tem sete deputados – 10% dos assentos). Esse cancelamento é altamente provável, já que o governo Milei não consultou a DNU com os deputados das câmaras antes de anunciá-la, alienando assim, por assim dizer, seus aliados em potencial desde o início.
Os partidos de oposição de centro e de esquerda reagiram negativamente à DNU. O presidente da representação do Senado da coalizão peronista Unión por la Patria, José Mayans, do Partido Justicialista, chamou a DNU de “venda do país” em benefício de uma pequena minoria. O antecessor de Milea como chefe de Estado, Alberto Férnandez (2019-2023), acusou o atual presidente de “abusar de seu poder” ao emitir o decreto. O prefeito de centro-direita de Buenos Aires de 2015-2019, Horacio Rodríguez Larreta, questionou a legitimidade constitucional e legal da DNU.
Conforme observado acima, também há dúvidas sobre até que ponto a DNU realmente atende aos critérios de “necessidade” e “urgência” em seu nome e se não se trata de uma usurpação de competência legislativa pelo presidente. A eficácia da DNU também será reduzida pela necessidade de promulgar legislação para implementá-la.
Obstáculos nas ruas
Como mencionado no início, a oposição contra a DNU também está tomando as ruas das cidades argentinas. Até o momento, entretanto, as manifestações não atingiram o tamanho esperado pelos iniciadores. Os discursos de rua foram convocados pelo Polo Obrero, de esquerda. Entretanto, é improvável que a manifestação de 20 de dezembro tenha atraído os 50.000 participantes anunciados; de acordo com dados do governo, esperava-se que os manifestantes fossem cerca de 3.000 em Buenos Aires.
A Confederação Geral do Trabalho, que é o maior sindicato do país e aliado dos peronistas, agora na oposição, adotou até agora uma atitude de esperar para ver, mas espera-se que os ânimos se exaltem. Portanto, é possível que ocorra uma greve geral na Argentina em janeiro.
A desregulamentação, por outro lado, foi bem recebida pelo capital: o sindicato industrial Unión Industrial Argentina, que gosta particularmente da abolição do imposto sobre a folha de pagamento e da maior flexibilidade do mercado de trabalho, e a Asociación Empresaria Argentina, que agrupa os diretores das maiores empresas. No mercado de ações argentino, após o anúncio do plano de L. Caputo e, posteriormente, da DNU, os preços das ações e dos títulos do governo subiram (4).
Obstáculos no cenário internacional
Por outro lado, o posicionamento internacional da nova equipe governante da Argentina pode ser complicado. O presidente liberal de esquerda do Chile, Gabriel Boric, o outrora proclamado presidente libertário da Ucrânia, Volodymyr Zelenski (com quem J. Milei trocou palavras calorosas), o primeiro-ministro conservador da Hungria, Viktor Orbán (com quem V. Zelenski trocou palavras pouco amistosas) e o ex-presidente brasileiro (2019-2023) Jair Bolsonaro, entre outros, compareceram à cerimônia de posse de J. Milei. No entanto, o atual presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva não compareceu, enviando seu ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira – a primeira vez em quarenta anos que um presidente brasileiro não esteve presente na cerimônia de posse de um presidente argentino.
A nova equipe também não se esquivou dos obstáculos nas relações com a China. O Sr. Milei chamou de volta o embaixador anterior de Buenos Aires em Pequim sem nomear um novo embaixador por vários dias. Em resposta, a República Popular da China convocou seu representante na capital argentina, Wang Wei. A Casa Rosada tentou salvar a situação enviando a Pequim o diplomata profissional Marcel Suárez Salvia, anteriormente encarregado de um cargo em Trinidad e Tobago, mas as consequências negativas de negligenciar os parceiros chineses não puderam mais ser contidas.
Buenos Aires é a beneficiária de um empréstimo recorde do FMI. Com seu acesso aos mercados financeiros ocidentais fechado desde 2018, o país vem pagando os juros com fundos fornecidos pela China. Depois de assumir o cargo, J. Milei enviou uma carta particular a Xi Jinping sobre essa questão. No entanto, o rebaixamento das relações políticas da Argentina com a China levou Pequim a suspender um swap de 6,5 bilhões de dólares. O acordo de swap de 6,5 bilhões de dólares entre o BCRA e o Banco Central da China, cuja implementação teria permitido que Buenos Aires desenvolvesse algumas reservas cambiais até o final de 2024.
Entretanto, durante o período da campanha eleitoral, J. Milei já havia anunciado que gostaria de romper todas as relações com a China, que, em sua opinião, é um país comunista e “carente de liberdade”. Após a posse de J. Milei, uma delegação diplomática chinesa liderada pelo embaixador Wang Wei visitou a Casa Rosada. Na ocasião, os chineses anunciaram que o novo presidente “atribui importância às relações bilaterais e aderirá ao princípio de uma só China”, mas essas palavras não foram confirmadas pelo lado argentino. Na administração do novo presidente, a defensora de uma política ideológica que distancia Buenos Aires de Pequim é a ministra das Relações Exteriores, Diana Mondino. Por outro lado, o defensor de uma política menos ideológica e mais realista é o Ministro da Economia, L. Caputo (5).
Um momento difícil para a Argentina
O próprio J. Milei, em seu discurso de 10 de dezembro para ambas as câmaras do Congresso, inaugurando sua presidência, previu que a inflação chegaria a 15.000%, que os déficits financeiros e fiscais chegariam a 17% do PIB e que a taxa de pobreza ultrapassaria 45%. De acordo com o novo presidente, espera-se que a terapia de choque leve à estagflação (estagnação econômica e inflação alta), atingindo a atividade econômica, o emprego, os salários reais e a taxa de pobreza. De acordo com o novo presidente, a Argentina, para se reerguer, precisa ter chegado ao fundo do poço econômico.
O porta-voz da presidência, Manuel Adorni, também anunciou que a “dor percebida” após a implementação do programa da nova administração. As prioridades do novo governo serão parar de emitir dinheiro sem garantia, o que o novo presidente do BCRA, S. Bausili, terá de garantir. O déficit orçamentário deve, de acordo com M. Adorni, ser eliminado até o final de 2024 (6). O próprio presidente, quando perguntado em uma entrevista de rádio sobre suas primeiras reformas, respondeu: “Eu osaviso, há mais a caminho!”
Notas
(1) ARGENTINA: El gobierno de Milei desvela medidas económicas de choque (latinnews.com) (30.12.2023).
(2) ARGENTINA: Milei inicia una campaña de desregulación (latinnews.com) (30.12.2023).
(3) Notizie dal mondo oggi: Israele vs Hamas, Ucraina – Limes (limesonline.com) (30.12.2023)
(4) ARGENTINA: Milei se enfrenta a la resistencia por el decreto de emergencia (latinnews.com) (30.12.2023).
(5) Il mondo questa settimana: patto di stabilità Ue – Limes (limesonline.com) (30.12.2023).
(6) Milei toma posesión y acelera la motosierra (latinnews.com) (30.12.2023).