Mediterrâneo Multipolar: O Desafio de um Futuro Melhor: Por uma Pax Mediterranea
O antigo coração do mundo
Na ampla e detalhada reflexão internacional sobre geopolítica, há uma tendência a refletir sobre os principais sistemas intercontinentais, concentrando-se principalmente nas duas macropotências que o século XX consagrou, ou seja, os Estados Unidos da América e a Federação Russa, tomando-os como referência de maneira quase unívoca; quando novas grandes potências se apresentam, como tem sido o caso desde o início de nosso século, há uma tentativa de fazer uma comparação com as duas potências majoritárias e estudar as relações e os laços que existem com elas. Isso manifesta, em minha opinião, um tipo de falha formal que é totalmente legítima, mas ao mesmo tempo necessária para revisão.
A geopolítica, de fato, desde sua fundação, concedeu um espaço privilegiado à geografia, que é uma de suas ciências constituintes, colocando a história em segundo lugar, um posicionamento mais relacionado à funcionalidade do que à importância disciplinar. Sem, portanto, discriminar desajeitadamente, ela criou uma espécie de bolha do eterno presente (ou eterno futuro) na qual muitas análises geopolíticas ocorrem, omitindo o passado e a construção historiográfica dos eventos geopolíticos, cuja compreensão é indispensável não apenas para entender o presente, mas, acima de tudo, para sugerir uma direção para o futuro.
Vamos pensar no Mediterrâneo. É o coração do chamado “Velho Mundo”, um acrônimo que vem da ideologia do ocidentalismo americano, que permeou a Europa durante décadas, para o qual cortar os laços que uniam os povos europeus ao seu contexto geográfico e geológico era um dever primordial. A fisionomia da Europa passou por uma grande reformulação no espaço de um século, descentralizando-se do Mediterrâneo, que havia sido o berço dos modelos de civilização e dos grandes impérios, para se deslocar entre Londres e Bruxelas, muito mais ao norte do que a historicidade dos fatos. Uma variação não apenas geográfica, mas existencial e, portanto, noologicamente falando, capaz de mudar irreversivelmente a manifestação do espírito dos povos que habitavam o continente.
Se Halford Mackinder tivesse nascido dois ou três séculos antes, provavelmente teria proferido palavras diferentes sobre o Heartland, que poderíamos usar como exemplo: “Quem controla o Mediterrâneo, controla o mundo”. O Mediterrâneo, portanto, não é o “coração do Velho Mundo”, mas o “velho coração do mundo”, porque até o desalinhamento das estruturas de poder em direção ao Atlântico, o Mediterrâneo era o centro nervoso e o objeto de cobiça e conquista. Dando uma rápida olhada na história europeia, esse parece ter sido o leitmotiv por séculos, desde os gregos antigos até pelo menos a Grande Guerra. Controlar o Mediterrâneo, definido como um mar fechado e, por essa razão, extremamente prolífico, rico e estrategicamente vantajoso, significava ter controle sobre o mundo inteiro na época. Porque, para todos os efeitos, o Mediterrâneo não é simplesmente a parte sul do continente europeu, com a extensão geográfica da Itália e suas ilhas; não é nem mesmo apenas um pedaço de água encerrado entre maravilhosos litorais férteis; é, antes de tudo, um domínio.
O Mediterrâneo sempre foi um grande espaço aberto para o qual convergiram muitas entidades diferentes, cujos destinos se entrelaçaram desde as épocas mais remotas, tecendo fluxos com densas tramas relacionais que geraram uma riqueza de identidades, culturas, artes e técnicas que ainda hoje empalidecem qualquer outro povo em comparação. Uma reconsideração de sua importância, sem por isso querer subverter os cânones “clássicos” da geopolítica como ciência, pode, no entanto, dar um impulso a reflexões e análises com um caráter diferente do habitual centrismo ocidental da ciência política contemporânea.
O mar é multipolar
O mar tem um status multipolar muito poderoso. O Mediterrâneo é, como já mencionado, multipolar por sua própria constituição, pois tem experimentado continuamente o controle e o confronto de uma miríade de células territoriais, grupos étnicos, idiomas, religiões e economias distribuídas pelas bordas do universo marítimo. É o mare nostrum que escrevemos em nosso sangue, é o local de competição entre potências regionais e globais. O mar nos envolve e nos permite alcançar vários polos do tabuleiro de xadrez geopolítico, constituindo o espaço favorito para movimentos de grande escala; ele também cobre a maior parte de todo o globo e armazena nele os principais recursos que impulsionam a economia internacional.
Vejamos novamente a história: o Império Romano é genericamente considerado um poder telurocrático. Roma, no entanto, expandiu-se não apenas graças às legiões que percorriam as vastas terras altas da Europa Central, chegando até as fronteiras das grandes montanhas no leste, mas também e desde o início em direção ao continente, cruzando o grande mar. A riqueza multiétnica e multicultural das conquistas do que se tornou o Império ocorreu justamente por causa do mar. Uma coincidência de domínios estratégicos e doutrinários que provavelmente é única em todo o planeta. Tal grandeza também foi econômica justamente por causa do mar, que possibilitou o comércio com o Oriente e com o Sul desde o início, traçando uma densa rede de rotas comerciais por água e por terra, tão bem construídas que ainda hoje funcionam bem.
Na bacia do Mediterrâneo, a Itália[1] é (ou melhor, deveria ser), por sua própria natureza, a detentora da liderança estratégica, uma proeminência que foi decisivamente frustrada nos últimos oitenta anos. Essa projeção natural tem estado no centro de nossa política externa desde antes de a Itália ser um estado unitário. A União Europeia e a OTAN[2] estão bem cientes dessa localização estratégica, tanto que as políticas de soft power e o posicionamento das alianças internacionais[3][4][5] estão concentrados nos povos mediterrâneos.
O próprio conceito do Mediterrâneo Ampliado, que considera o mar como um domínio multidimensional complexo capaz de incorporar a Europa continental, o Oriente Médio e os cinturões norte e subsaariano do continente africano, além de se conectar com o Extremo Oriente e, é claro, abrir-se para o oeste em direção ao oceano, é uma continuação ideal e estratégica do mare nostrum da memória romana[6].
Cartago desalinhada, Roma ocupada e a História invertida
Compreende-se que os interesses estratégicos do pólo anglo-americano, constituindo a talassocracia por excelência, fossem subjugar o Mediterrâneo com os seus povos. Um certo nível de controle, direto e indireto, teria garantido a exploração daquele mar de uma forma funcional ao expansionismo hegemônico, mas também a possibilidade de manter o crescimento e a recuperação dos Estados-nações europeus limitados e dentro de limites controláveis após a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais. Subjugar os governos que bordejam o Mediterrâneo garante o controle do Mediterrâneo, o que foi feito militar, financeira e politicamente ao longo de pouco mais de um século de relações internacionais, conflitos armados e crises econômicas, mas sempre com um enredo preciso e coerente.
Cartago, a arqui-inimiga de Roma, está agora desalinhada e descentralizada, já não está geograficamente onde costumava estar, mas está localizada entre Londres e Washington, e a partir daí tem operado com sucesso o seu plano de reapropriação do mar que outrora dominou. Os Pilares de Hércules foram ultrapassados, deixaram de ser um temível limite natural e metafísico da subsistência dos povos mediterrânicos. A história está, de certo modo, invertida porque Roma já não tem poder e está submissa aos herdeiros de Cartago, ao ponto de sugerir a inexistência de uma civilização mediterrânica, o que é possível admitindo a continuação de um mundo não multipolar, mas unipolar, com hegemonia atlântica. Roma está, de certa forma, ocupada pelos emissários de Cartago.
As potências mediterrânicas[7] têm dentro de si um enorme potencial de vingança contra o pólo anglo-americano; um potencial que, no entanto, é, pelo menos hipoteticamente, incapaz de fazer face, por si só, às proporções de um conflito talassocrático mundial, em que, por conjugação de elementos, o pólo anglo-americano é, em qualquer caso, maior, mais forte e mais organizado. Estrategicamente, a eventualidade de um conflito para recuperar a independência significaria um esforço tão grande que arriscaria a aniquilação; do mesmo modo, economicamente, isso implicaria uma autonomia suficientemente forte para desvincular o Mediterrâneo de todas as parcerias e dependências económicas e políticas internacionais.
No entanto, a deslocação de Cartago não é a deslocação do Mediterrâneo e dos seus povos, o que significa que ainda existe um potencial viável de reconquista.
Uma parceria mediterrânica
No final desta discussão, esperando a reafirmação em chave multipolar do Mediterrâneo com os seus povos, interessa lançar uma projeção sobre uma possível parceria mediterrânica, composta pelos países que por ele são banhados e que têm suficiente interesse estratégico, geopolítico e geoeconômico em reafirmar a autonomia macrorregional e o reequilíbrio entre o domínio da Terra e do Mar, fulcro da grandeza histórica da Europa.
Uma tal parceria é, de fato, já possível e, em certa medida, a descentralização administrativa e estratégica da OTAN, alguns poderão argumentar, representa já uma tal aliança. Na verdade, é precisamente com vista à dissociação da dependência atlântica, e só por essa via, que será possível uma autonomia mediterrânica integral. Ainda numa perspectiva multipolar, a parceria mediterrânica permitiria a reconstituição de antigos tratados e alianças que permitiriam aos Estados da bacia consolidarem-se como um centro nevrálgico entre a Europa, a Eurásia, a Ásia, o Médio Oriente e a África, com a possibilidade de consolidar um bloco estratégico tão forte que deixaria o continente americano em segundo plano em relação à hiperregião “a leste”.
Um tal acordo internacional reabriria a porta a um enorme reforço de alianças em chave europeia – e não necessariamente segundo o modelo da União Europeia -, tanto econômica como estrategicamente, fortalecendo o bloco continental e tornando-o um ponto de referência inabdicável para as rotas e fronteiras do “velho mundo”, como, de resto, tem sido ao longo dos séculos de presença dos impérios europeus. Hoje é difícil pensar numa Europa mediterrânica e não atlântica, porque uma vez perdida a independência interna e internacional, os laços estabelecidos provocaram uma subjugação tão forte que dela dependia a própria existência das instituições políticas. É ainda difícil pensar nos países europeus, em primeiro lugar na Itália, como potências econômicas capazes de ditar o curso dos mercados e não de se submeter a eles.
É precisamente esta perspetiva de prosperidade (trocadilho intencional) que os Estados Unidos não querem, mas que os europeus, os mediterrânicos, são chamados a recuperar.
Ora, para a realização de qualquer parceria ou aliança, são necessárias certas condições objectivas, a mais importante das quais é a paz. Pax, em latim, não é a simples ausência de guerra, mas sim a adoção de um modus vivendi, imposto por uma potência concorrente ou estabelecido por acordo entre as partes. Uma Pax Mediterranea seria uma paz dos povos mediterrânicos, dos povos europeus, uma harmonização dos modelos civilizacionais tradicionalmente encontrados nessa macro-área geográfica; uma paz entre o Norte de África, entre o Crescente do Médio Oriente, entre a Europa do Sul, entre os povos dos Balcãs; uma paz que se abra ao Oceano Atlântico mas não se deixe influenciar pelo seu poder, porque os Pilares de Hércules permanecem firmes na defesa do Mediterrâneo; uma paz que seja geoeconomicamente conveniente, na medida em que atrai investimentos e garante fluxos; uma paz, enfim, capaz de estabilizar o plano das relações internacionais numa identidade partilhada verdadeiramente multipolar.