Em entrevista a Manuel Ochsenreiter, Aleksandr Dugin discorre sobre a importância da alianças entre anti-globalistas de direita e de esquerda e sobre os conflitos entre liberais com a entrada dos liberais 1.0, os liberais “clássicos”, sob a figura simbólica de Donald Trump, no rol de inimigos – de que o comunismo e fascismo já fazem parte – pelo Liberalismo 2.0, o pós-liberalismo, o liberalismo globalista de Biden e Soros.
Entrevista a Aleksandr Dugin por Manuel Ochsenreiter
Ochsenreiter: Professor Dugin, em seu último ensaio o senhor escreveu sobre o “Liberalismo 2.0”. O liberalismo está mudando?
Dugin: Claro! Toda ideologia está sujeita a mudanças constantes, incluindo o liberalismo. No momento, estamos testemunhando uma mudança dramática no liberalismo. Agora ele está ficando ainda mais perigoso, ainda mais destrutivo.
O: Como se pode observar essa mudança?
D: Podemos observar um certo “rito de passagem”. Assim, interpreto a situação em que culminou a presidência de Donald Trump, ou seja, sua queda das mãos da elite globalista, representada por Joe Biden. Isso nada mais é do que um “rito de passagem”, personificado por desfiles gays, levantes BLM, ataques imperialistas LGBT+, o levante mundial do feminismo extremo e a chegada espetacular do pós-humanismo e da tecnocracia extrema. Existem profundos processos intelectuais e filosóficos por trás de tudo isso. E esses processos têm impacto na cultura e na política.
O: Você escreve que o liberalismo se tornou “solitário”…
D: O liberalismo moderno parece ter perdido seus inimigos após o colapso da União Soviética. Isso é fatal para essa ideologia, pois é basicamente definida por sua demarcação. Na minha “Quarta Teoria Política”, o liberalismo é definido como a primeira teoria, a lutar contra os dois “principais inimigos”: o comunismo (segunda teoria) e o fascismo (terceira teoria). Ambos desafiaram o liberalismo, porque o liberalismo afirma ser a teoria mais moderna e progressista, mas tanto o comunismo quanto o fascismo afirmaram o mesmo. Em 1990, o comunismo e o fascismo foram considerados derrotados.
Isso é frequentemente chamado de “momento unipolar” (Charles Krauthammer) e foi prematuramente, como agora sabemos, até elevado por Francis Fukuyama ao “fim da história”. Na década de 1990, porém, parecia que o liberalismo não tinha mais oponentes. As alianças antiliberais menores e florescentes de direita, esquerda e “nacional-bolcheviques” não eram um verdadeiro desafio. A ausência de “inimigos” para o liberalismo também significava que ele havia perdido sua auto-afirmação. Aqui vemos muito claramente a “solidão”, à qual não me refiro em um sentido melancólico. Portanto, a transição para o Liberalismo 2.0 com um “novo ímpeto” era quase inevitável.
O: Como você descreveria isso?
D: Tiveram de trazer de volta um oponente. Mas, na realidade, apenas as alianças fracas e iliberais que podem ser descritas como “nacional-bolcheviques” foram oferecidas, mesmo que os próprios movimentos não vejam dessa forma. Talvez seja mais compreensível se os novos campos políticos forem divididos em globalistas (Liberalismo 2.0) e anti-globalistas. Não se esqueça: o liberalismo 1.0 não irá “se reformar”, ele também se tornará o “inimigo” do liberalismo 2.0. Talvez possamos até falar de uma “mutação”, porque também existem liberais antiquados que agora são mais atraídos pelo campo anti-globalista, porque rejeitam o individualismo ilimitado, hedonista e total do Liberalismo 2.0.
O: Então, liberais contra liberais?
D: O liberalismo 2.0 pode ser visto como uma espécie de “quinta coluna” dentro do liberalismo. E o novo liberalismo é brutal e inflexível, não discute mais, não convida ao debate. É uma “cultura de cancelamento”, estigmatiza seus oponentes, os exclui. Os “velhos” liberais também são vítimas disso, como pode ser visto quase regularmente na Europa de hoje. Quem são as vítimas da “cultura de cancelamento”? Talvez fascistas ou comunistas? Na maioria das vezes são os artistas, jornalistas e autores que estiveram totalmente imersos na cultura oficial, mas agora são atacados repentinamente. O liberalismo 2.0 deixa que o martelo gire em círculos.
O: Seu país, a Rússia, é visto hoje como um grande oponente do globalismo, especialmente sob o presidente Vladimir Putin…
D: O ressurgimento da Rússia de Putin pode ser entendido como uma nova mistura da estratégia ao estilo soviético de política antiocidental e nacionalismo russo tradicional. Por outro lado, o fenômeno Putin permanece um mistério, mesmo para nós, russos. Certamente, elementos “nacional-bolcheviques” podem ser reconhecidos em sua política, mas também muitos elementos liberais. Aliás, isso também se aplica ao fenômeno chinês. Aqui vemos novamente o comunismo chinês especial misturado com o nacionalismo chinês perceptível. O mesmo pode ser dito do crescimento do populismo europeu onde a distância entre a esquerda e a direita está desaparecendo cada vez mais a ponto da criação simbólica da aliança direita-esquerda no governo italiano: Estou falando do acordo entre a “Lega Nord” (populista de direita) e o movimento “5 estrelas” (populista de esquerda).
O: As alianças “direita-esquerda” que menciona só existiram por um certo período de tempo, muitas vezes lutando entre si mais do que com o centro liberal…
D: Esse é um ponto chave. Uma vez que as alianças anti-globalistas de direita-esquerda são os maiores oponentes do Liberalismo 2.0, você deve combatê-las constantemente, mantê-las pequenas e infiltrar-se nelas também. Se a esquerda e a direita anti-globalistas na Europa estão lutando entre si mais do que o centro, então o liberalismo 2.0 é um terceiro que ri. Além disso, há mesmo uma certa tendência por parte dos marginalizados de concordar com o centro na luta contra o outro marginalizado. Acho que essa situação pode ser vista em todos os países europeus. Assim, o globalismo fragmenta o campo de seus oponentes e impede uma aliança possivelmente poderosa.
O: Como poderia ser essa “aliança poderosa”?
D: Se Putin da Rússia, Xi Jinping da China, populistas europeus e movimentos anti-ocidentais no Islã, as correntes anticapitalistas na América Latina e na África estivessem cientes de que se opõem ao globalismo liberal a partir de uma posição ideológica um tanto unida e adotassem como base populismos de esquerda/direita e integrais, isso teria aumentado muito sua resistência e até mesmo multiplicado seu potencial. Portanto, para não permitir que isso aconteça, os globalistas não deixaram pedra sobre pedra para impedir qualquer movimento ideológico nesta direção.
O: Em seu ensaio, se refere a Donald Trump como uma espécie de parteira do liberalismo 2.0. O que quer dizer com isso?
D: Já o disse: não pode existir uma ideologia política se se apaga o “antagonismo amigo-inimigo”. Ela perde sua identidade. Não ter mais inimigos é cometer suicídio ideológico. Portanto, um inimigo externo obscuro e indefinido não era suficiente para justificar o liberalismo. Ao demonizar a Rússia de Putin e a China de Xi Jinping, os liberais não conseguiam mais ser convincentes. Mais do que isso: a suposição da existência de um inimigo ideológico formal e estruturado fora da zona de influência liberal (democracia, economia de mercado, direitos humanos, tecnologia universal, rede total, etc) após o início do momento unipolar, no início da década de 1990, globalmente, teria sido o equivalente a reconhecer um erro grave. Logicamente, um inimigo tinha que aparecer de dentro. Esta era uma necessidade teórica no desenvolvimento de processos ideológicos durante a década de 1990.
Esse inimigo de dentro apareceu bem a tempo, no momento exato em que era mais necessário. E ele tinha um nome: Donald Trump. Ele personificou a fronteira entre o liberalismo 1.0 e o liberalismo 2.0. Inicialmente, foi feita uma tentativa de estabelecer uma conexão entre Trump e Putin. Isso danificou seriamente a presidência de Trump, mas era ideologicamente inconsistente. Não apenas por causa da falta de relações reais entre Trump e Putin e do oportunismo ideológico de Trump, mas também porque o próprio Putin é, de fato, um realista muito pragmático.
Caminho para a governança global
Como Trump, Putin é um populista de pesquisas e, como Trump, tem mais probabilidade de ser um oportunista sem nenhum interesse real em uma visão de mundo. O cenário alternativo que apresenta Trump como um “fascista” é igualmente ridículo. Ter sido usado por seus rivais políticos com muita frequência causou problemas para Trump, mas também foi inconsistente. Nem o próprio Trump nem seu gabinete eram compostos de “fascistas” ou representantes de quaisquer tendências extremistas de direita, que há muito foram marginalizados na sociedade americana e só existiam como uma espécie de cultura kitsch ou marginal ultra-libertária.
O: Afinal, como Trump pode ser classificado?
D: Trump foi e é um representante do liberalismo 1.0. Se colocarmos de lado todos os regimes estrangeiros que se opõem à ideologia liberal em sua prática política, restará apenas um verdadeiro inimigo do liberalismo: o próprio liberalismo. Portanto, para seguir em frente, o liberalismo teve que realizar uma “limpeza interna”. E é precisamente esse velho liberalismo que foi identificado com a figura simbólica de Donald Trump. Ele foi o inimigo máximo na campanha eleitoral de Joe Biden, que defende o novo liberalismo 2.0. Biden falou do “retorno à normalidade”. O liberalismo 1.0 – nacional, capitalista, pragmático, individualista e até certo ponto libertário – foi então declarado uma “anormalidade”.
O: O liberalismo se centra no individualismo, ou seja, o ser humano individual. Outras ideologias falam em termos de coletivos, como o povo ou a classe. O que o liberalismo 2.0 faz?
D: Correto. A figura do indivíduo desempenha o mesmo papel na física social do liberalismo que o átomo na física científica. A sociedade é composta de átomos/indivíduos, que são a única base real e empírica para as subsequentes construções sociais, políticas e econômicas. Tudo pode ser reduzido ao indivíduo. Essa é a lei liberal. Portanto, a luta contra todos os tipos de identidade coletiva é o dever moral dos liberais e o progresso é medido pelo sucesso ou não dessa luta.
O: Uma olhada nas sociedades ocidentais mostra que a luta foi um grande sucesso…
D: Naquela época, quando os liberais começaram a se dar conta desse cenário, apesar de todas as vitórias, ainda havia algo coletivo, uma espécie de identidade coletiva esquecida que também precisava ser destruída. Bem-vindo à política de gênero! Ser homem e mulher significa compartilhar uma identidade coletiva que dita fortes práticas sociais e culturais. Este é um novo desafio para o liberalismo. O indivíduo deve se libertar do sexo biológico, pois este ainda é visto como algo objetivo. O gênero deve ser puramente opcional e visto como consequência de uma decisão puramente individual.
A política de gênero começa aqui e muda a própria natureza do conceito de indivíduo. Os pós-modernistas foram os primeiros a mostrar que o indivíduo liberal é uma construção racionalista masculina. A simples igualdade de oportunidades e papéis sociais para homens e mulheres, incluindo o direito de mudar de gênero à vontade, não resolve o problema. O patriarcado “tradicional” ainda sobrevive definindo a racionalidade e as normas. Portanto, concluiu-se que a libertação do indivíduo não é suficiente. O próximo passo consiste na liberação do ser humano ou melhor, da “entidade vivente” do indivíduo.
Aproxima-se o momento da substituição definitiva do indivíduo pela entidade de gênero opcional, uma espécie de identidade em rede. E a etapa final será substituir a humanidade por seres assustadores: máquinas, quimeras, robôs, inteligência artificial e outras espécies de engenharia genética. A linha divisória entre o que ainda é humano e o que já é pós-humano é o principal problema da mudança de paradigma do liberalismo 1.0 para o liberalismo 2.0. Trump foi um individualista humano que defendeu o individualismo no velho estilo do contexto humano. Talvez tenha sido o último de sua espécie. Biden é um representante da chegada da pós-humanidade.
O: Até agora, tudo parece uma marcha silenciosa para a elite globalista. Isso pode ser neutralizado?
D: Não se pode deixar de perceber que tanto o antigo nacionalismo quanto o comunismo foram derrotados pelo liberalismo. Nem o populismo antiliberal de direita nem de esquerda podem ganhar a vitória sobre o liberalismo hoje. Para fazer isso, teríamos que integrar a esquerda antiliberal e a direita antiliberal. Mas os liberais no poder estão muito atentos a isso e sempre tentam impedir qualquer movimento nessa direção de antemão.
A miopia dos políticos e grupos radicais de esquerda e direita apenas ajuda os liberais a implementar sua agenda. Ao mesmo tempo, não devemos ignorar o abismo crescente entre o liberalismo 1.0 e o liberalismo 2.0. Parece que a limpeza interna da modernidade e da pós-modernidade está agora levando a uma punição brutal e à excomunhão de novas espécies de seres políticos; desta vez, os mesmos liberais estão sendo sacrificados.
Aqueles que não se consideram parte da estratégia do Grande Reset e do eixo Biden-Soros, aqueles que se recusam a desfrutar da morte final da boa e velha humanidade, dos bons e velhos indivíduos, da boa e velha liberdade e da economia de mercado. Não haverá lugar para nada disso no Liberalismo 2.0.
O: Tornar-se um pós-humano e qualquer um que questionar esse novo conceito será bem-vindo à União de Inimigos da Sociedade Aberta.
D: E então nós, russos, podemos dizer a eles: “Estamos aqui há décadas e nos sentimos mais ou menos em casa. Portanto, lhes damos as boas-vindas ao inferno, novatos! “Todo apoiador de Trump e republicano comum agora é visto como uma pessoa potencialmente perigosa, assim como temos sido por muito tempo. Deixemos os liberais 1.0 entrarem em nossas fileiras! Para fazer isso, não é necessário se tornar antiliberal, filocomunista ou ultranacionalista. Nada disso! Todos podem manter seus velhos preconceitos pelo tempo que quiserem. A “Quarta Teoria Política” apresenta uma posição única onde a verdadeira liberdade é acolhida: a liberdade de lutar pela justiça social, ser um patriota, defender o Estado, a Igreja, o povo, a família e permanecer um ser humano.