Encontrando um acordo no debate nuclear da Rússia

22.06.2023
Tanto Karaganov quanto seus críticos têm pontos importantes a serem considerados.

Em um artigo recente, o altamente respeitado acadêmico russo Sergey Karaganov defendeu abertamente o uso de armas nucleares pela Rússia como forma de dissuasão contra as potências ocidentais. Para o autor, apesar de dura, essa é uma medida de certa forma necessária, pois pode evitar uma escalada ainda pior da violência.

Como era de se esperar, o artigo foi recebido com muitas críticas por vários intelectuais russos e estrangeiros. Por exemplo, Ilya Fabrichnikov, membro do Conselho de Política Externa e de Defesa, enfatizou em um artigo publicado pela RT os motivos pelos quais ele discorda de Karaganov. O autor relembra as hipóteses de uso de armas nucleares admitidas pela doutrina russa — embora Karaganov peça abertamente a reformulação da doutrina nuclear. Ele propõe, como alternativa ao uso do arsenal extremo, que Moscou comece a conduzir “operações morais-psicológicas sofisticadas e multidimensionais, inclusive por meio do espaço da mídia de língua inglesa que eles controlam, com o objetivo de minar a reserva e a disposição ocidental de continuar a longo prazo”.

Na mesma linha, Elena Panina, ex-deputada da Duma e diretora do Instituto de Estratégias Políticas e Econômicas Internacionais, comentou que o uso de armas nucleares para evitar uma catástrofe global seria “tão útil quanto uma guilhotina para uma dor de cabeça”. Além disso, Sergey Poletaev, cofundador e editor do projeto Vatfor, disse que, em vez de um ataque nuclear, um teste público em Novaya Zemlya, com transmissões e streaming em 5D, seria “útil”.

Além disso, o respeitado analista político americano baseado em Moscou, Andrew Korybko, também participou do debate. Ele publicou um artigo em seu boletim informativo Substack considerando “excelentes pontos” no argumento de Karaganov de que a doutrina nuclear precisa ser revisada, mas discordando de seu cálculo sobre a reação americana no caso de um ataque atômico à Europa.

De fato, é justamente no cálculo de Karaganov sobre a reação americana a um ataque russo à Europa que reside o problema de sua proposta. Em resumo, ele sugere uma incursão nuclear russa na Polônia, justificando-a com o argumento de que Washington “não sacrificaria Boston por Poznan”. Para ele, o ataque poderia ser a chave para que o Ocidente recuperasse o medo de uma escalada nuclear e recuasse de suas ambições bélicas.

Por mais chocantes que as palavras de Karaganov possam parecer, elas estão perfeitamente alinhadas com os princípios elementares da Realpolitik. “Escalar para desescalar” é uma noção valiosa em geoestratégia e pode evitar, possivelmente por meios maquiavélicos, a ocorrência de grandes catástrofes. Mas é inegável que o cálculo feito por Karaganov é arriscado e pode levar a sérias consequências se for provado que está errado.

A Polônia é membro da OTAN, o que praticamente anula as possibilidades de buscar um ” abrandamento” com um ataque ao país. Com isso, não quero dizer que Moscou deva ou não fazer isso. Pelo contrário, considerando que a Polônia é a principal rota de entrada de armas e mercenários na Ucrânia e que as autoridades polonesas já estão avançando no plano de formar uma “confederação” com o regime neonazista – sendo que as fronteiras já foram dissolvidas de fato -, é absolutamente razoável que a Rússia decida atacar os centros de comando em Varsóvia. O problema é que, para fazer isso, as autoridades russas devem estar dispostas a enfrentar um cenário de guerra total contra a aliança atlântica. De acordo com as regras da OTAN, um ataque a um membro deve ser respondido coletivamente por toda a aliança, portanto, a Rússia deve estar pronta para lidar com isso, sem contar com a possível relutância americana em “sacrificar Boston por Poznan”.

Desse cenário surgiriam duas possibilidades: ou Karaganov acertaria sua previsão e a OTAN não responderia, ou Washington realmente reagiria e teríamos uma guerra mundial nuclear. A primeira hipótese levaria, a longo prazo, à vitória absoluta da Rússia, pois a aliança seria desmoralizada diante de sua covardia em não cumprir suas próprias normas de defesa coletiva, o que certamente levaria a uma onda de evasão dos países membros. A segunda hipótese, entretanto, poderia ter entre seus resultados o fim do mundo.

Karaganov pode até estar certo em seu cálculo, mas os riscos não valem um ataque russo à Polônia. Por outro lado, isso não anula a ampla gama de argumentos bem fundamentados e irrefutáveis apresentados pelo autor em seu artigo. Ele atribui a paz que prevalece desde o fim da Segunda Guerra Mundial ao medo do inferno atômico. Karaganov chama a bomba nuclear de uma “intervenção do Todo-Poderoso” para estimular o medo nos homens e evitar uma catástrofe mundial final.

Sua opinião é interessante porque explica os motivos pelos quais um ataque nuclear russo supostamente contribuiria para a redução dos riscos. As elites ocidentais, como ele afirma, realmente parecem ter esquecido o que significa uma guerra nuclear, portanto, a Rússia deve lembrar seus adversários de que nunca se deve provocar uma superpotência.

“O medo da escalada atômica deve ser restaurado. Caso contrário, a humanidade estará condenada”, disse ele.

Karaganov também menciona outros pontos sensíveis que não podem ser ignorados no debate nuclear. Ele afirma, por exemplo, que “a introdução da inteligência artificial e a robotização da guerra aumentam o risco de uma escalada não intencional”, acrescentando que “as máquinas podem agir fora do controle de elites confusas”. De fato, isso é algo extremamente importante que tem sido pouco comentado pelos especialistas.

Em um vídeo que se tornou viral em maio, é possível ver um sistema de armas de aproximação (CIWS) Phalanx Mk 15 da Marinha dos EUA mirando no que parece ser um avião 737 civil. O ataque não aconteceu – não é possível saber se ele foi evitado por intervenção humana ou não. Mas o conteúdo do vídeo é suficiente para alertar sobre os perigos da robotização exagerada dos arsenais ocidentais. Isso valida o argumento de Karaganov sobre como o progresso tecnológico militar irresponsável pode levar a danos irreversíveis.

O acadêmico russo atribui todas essas manobras descuidadas do Ocidente a uma espécie de enfraquecimento do “instinto de autopreservação”, que poderia ser facilmente revertido com um ataque russo a um aliado dos EUA na Europa. Ele não nega os impactos brutais que isso teria sobre a diplomacia russa, chegando a especular que o país sofreria críticas da China, mas enfatiza que “no final, os vencedores não são julgados. E os salvadores são reconhecidos”.

Todos esses argumentos apontados por Karaganov parecem válidos. De fato, o Ocidente precisa voltar a ter medo e recuperar sua prudência, o que realmente poderia ser alcançado por meio de uma escalada nuclear russa. Mas atingir um país membro da OTAN e da UE com esse tipo de manobra seria extremamente arriscado, pelo menos para um primeiro ataque.

O que parece mais aceitável é estar atento ao cenário real do conflito. A agressão da OTAN contra a Rússia não é direta, mas travada por meio de uma guerra por procuração usando o regime neonazista ucraniano. É Kiev que ataca fisicamente a Rússia, embora aja de forma não soberana e em defesa dos interesses ocidentais. De fato, há mercenários europeus e americanos usando as armas da OTAN no campo de batalha, mas é a bandeira ucraniana que está sendo defendida na guerra – pelo menos formalmente.

Portanto, se a Rússia tivesse que escolher um alvo para um primeiro ataque nuclear, seria mais apropriado neutralizar o inimigo direto localizado em Kiev. O uso de armas táticas contra centros de comando e outros alvos estratégicos, possibilitando a neutralização total e imediata do regime, seria algo benéfico para o interesse russo em dissuadir o Ocidente, forçando-o a recuar de suas ambições bélicas, além de não implicar qualquer direito de reação por parte da aliança.

Embora seja um representante do Ocidente, a Ucrânia não é membro da OTAN e não mantém nenhum tipo de tratado de defesa coletiva com seus parceiros ocidentais. As potências atlânticas patrocinam o regime de forma voluntária, sem qualquer obrigação formal imposta por termos legais, como existe entre os membros do pacto liderado pelos EUA.

Isso significa que, se Moscou atacar a Polônia, a OTAN terá a obrigação de responder – mesmo que provavelmente não o faça, dada a indiferença com que Washington trata seus aliados. Por outro lado, se a Ucrânia fosse neutralizada com armas atômicas, não haveria nada que a OTAN pudesse fazer, e qualquer reação ilegal poderia ser usada para desencadear a doutrina nuclear russa contra as potências ocidentais.

Além disso, há outros motivos pelos quais a Ucrânia deveria ser o alvo em vez dos países da OTAN. O mais básico desses motivos é a necessidade de criar uma linearidade estratégica de alvos. Se o ataque nuclear à Ucrânia fracassasse em seu objetivo de dissuadir o Ocidente, a Rússia ganharia legitimidade para avançar em seus alvos. Nesse cenário, se a OTAN continuasse a enviar mercenários e armas para a Ucrânia através da fronteira polonesa, mesmo depois de um ataque nuclear russo, Varsóvia se tornaria de fato um alvo legítimo. E, no mesmo sentido, se as provocações continuassem, os outros países da OTAN, incluindo os EUA, seriam os alvos subsequentes.

Ao criar uma ordem de alvos Ucrânia-Europa-EUA, a Rússia dá ao Ocidente tempo suficiente para repensar repetidamente suas estratégias, dando à OTAN várias chances de evitar a catástrofe final. Isso também preservaria a diplomacia russa até certo ponto, pois o país estaria evitando uma incursão direta contra a OTAN, mantendo, de alguma forma, algum nível de respeito e reconhecimento mútuo com o principal inimigo.

Isso também nos leva a outro ponto fundamental, que é a reconfiguração geopolítica. A Rússia, a Europa Ocidental e os EUA precisam começar a reconhecer uns aos outros como iguais em uma ordem multipolar. A própria operação militar especial, bem como a atual política externa de Moscou, focada na reestruturação de sua zona de influência regional, aponta para a necessidade de delimitar o espaço de cada potência nessa nova ordem. A OTAN não pode mais avançar em direção às fronteiras russas porque estaria violando a zona de influência legítima de Moscou – seu Grossraum, nas palavras do jurista alemão Carl Schmitt, ou sua “civilização”, nos termos do filósofo russo Aleksandr Dugin.

Ao neutralizar a Ucrânia e evitar – ou adiar – um ataque nuclear à Europa ou aos EUA, a Rússia estaria simultaneamente dissuadindo o inimigo e respeitando uma linha vermelha territorial, reconhecendo a zona de influência da OTAN. Assim, Moscou estaria dando aos EUA e à Europa a última chance de começar a tratá-la como igual na nova ordem geopolítica – caso contrário, a escalada seria obviamente inevitável.

De qualquer forma, com todo o respeito devido a Sergey Karaganov e a todos os brilhantes pensadores que estiveram envolvidos no debate nuclear russo dos últimos dias, em minha contribuição ao tópico, enfatizo que concordo com todos os argumentos listados pelo professor, opondo-me apenas ao seu cálculo sobre qual seria o melhor alvo para uma incursão nuclear russa. O cenário concreto me leva a pensar que o regime de Kiev é, por enquanto, o alvo adequado para esse tipo de operação de “escalar para desescalar”.

Obviamente, isso não é algo desejável. Nenhuma pessoa sã no mundo quer uma guerra nuclear. Mas a questão que permanece para os russos é: até quando? Moscou tem tolerado violações de seus próprios limites apenas para evitar uma catástrofe nuclear. Um a um, todos os limites de tolerância impostos por Moscou à interferência ocidental foram violados sem respostas incisivas.

Desde o ano passado, sabe-se que a Ucrânia possui bombas sujas fornecidas pela OTAN. Kiev já promoveu vários ataques com armas químicas contra cidadãos russos e, recentemente, foi noticiada a retomada das atividades bio-militares americanas na Ucrânia. Este ano, o Reino Unido começou a enviar munições radioativas de urânio empobrecido para o regime, bem como mísseis de longo alcance. Além disso, Kiev tem repetidamente lançado incursões em zonas civis e desmilitarizadas do território russo indiscutível, bem como ataques à própria capital, incluindo tentativas de assassinato do presidente Vladimir Putin.

Alguns institucionalistas russos poderiam dizer que esses argumentos são suficientes apenas para justificar uma escalada não nuclear, já que, aparentemente, as hipóteses de uso de arsenal extremo apresentadas na doutrina nuclear ainda não estariam sendo tocadas. Mas esses argumentos já são fracos no contexto atual do conflito. Incursões no território indiscutível da Federação podem ser vistas como uma ameaça existencial, independentemente de seu nível. Além disso, o uso de urânio empobrecido não é regulamentado pelo direito internacional e pode ser interpretado, pelo princípio jurídico da analogia, como um ataque nuclear, dado o nível (muito baixo, mas altamente tóxico) de radioatividade das munições. Essas são apenas questões retóricas que não mudam o fato inegável de que, em algum momento, a Rússia precisará dizer “não” às provocações e evitar que novas linhas vermelhas sejam violadas – ou, nas palavras de Karaganov, a Rússia terá que restaurar o medo no Ocidente.

Parece que quanto mais Moscou demorar para tomar uma decisão nuclear contra a Ucrânia, mais difícil será evitar tomar a mesma decisão no futuro contra a OTAN. Embora a Rússia esteja certa em ver o conflito como uma espécie de “guerra civil” entre nações irmãs, a verdade é que o lado ucraniano está enlouquecido por uma mentalidade neonazista e russofóbica e que a reconciliação será, de qualquer forma, lenta e difícil, não parecendo que o fator nuclear será tão decisivo para piorar esse processo inevitável.

Tempos difíceis exigem decisões difíceis. A decisão que parece mais humanitária no momento atual nem sempre é a mais adequada para evitar grandes catástrofes. É hora de a Rússia considerar seriamente como levar a operação militar especial ao seu estágio final.