O metaverso e a dependência: quanto tempo tem o Brasil?

02.02.2022

Perdendo somente para o COVID-19, o metaverso alcançou o posto de segundo assunto mais falado e pertinente da década até o momento. Mas será que nós, brasileiros, estamos nos preocupando à toa? Não trata-se dum futuro ainda muito distante para o mundo subdesenvolvido? À luz da teoria da dependência, tudo infelizmente indica que não.
Enquanto a endógama esquerda pós-moderna do Ocidente permanece com os punhos pueris erguidos em oposição àquilo que—na sua teimosia em superar o fim do século XX—ainda insiste em chamar de ‘neoliberalismo colonialista’ e sonha perpetuamente com o advento de uma utopia universal formada por estados de bem-estar social politicamente corretos coexistindo harmonicamente, o capitalismo de plataforma segue em marcha livre e frenética rumo ao iminente advento do futurismo muskiano-zuckerberguiano tecnocrático e apátrida cujo lema é “You’ll own nothing and you’ll be happy.”

Tal estágio do capitalismo global chega aos seus mais novos cumes na forma do metaverso, que visa plataformizar e intermediar através de meios técnico-burocráticos superficialmente complexos, desta vez, não só mais um serviço essencial preexistente, como fez a Uber e a Airbnb, mas as relações humanas como um todo. O Great Reset publicamente almejado pelo Fórum Econômico Mundial encontrou na suspeita coincidência temporal entre o auge supostamente espontâneo do COVID-19 em suas infinitas variantes superletais e o anúncio do planejadíssimo metaverso de Zuckerberg um prospecto, no mínimo, muito conveniente às ambições futuristas da elite global que o compõem. A histeria sanitarista perene em que vive o mundo ocidental e os seus mais fiéis e exemplares representantes populares e midiáticos clama por uma solução que reinvente a vida no século XXI, tornando mais atrativa, vantajosa e chic a ideia de viver numa (cada vez mais provável) eterna quarentena institucionalizada.

As primeiras denúncias de assédio sexual, a realização de casamentos oficiais, a abertura de escritórios de advocacia, o precoce surgimento de um mercado imobiliário pujante, a venda de bens de luxo a custos exorbitantes e a crescente presença de logotipos que já são velhos conhecidos no ‘mundo real’ dentro do metaverso denunciam que, sim, a mais nova plataforma veio para enterrar a ‘velha internet’ e gozar de uma abrangência e de uma legitimidade das quais ela nunca seria capaz. O rompimento definitivo da linha tênue entre real e virtual decreta a obsolescência e a necessidade urgente de ‘reinvenção via simulação’ de todas as instituições que desejarem ter parte e sobreviver dentro desta nova e

Mark Zuckerberg no Mobile World Congress de 2016, em Barcelona

 

Há quem pense que tais ‘abalos sísmicos’ não atingirão o Sul global dentro dum futuro próximo (apesar de já termos visto o Banco do Brasil aderir à ideia) e que trata-se, por ora, apenas de barulho, mas a verdade é que a Meta de Zuckerberg já favorece uma práxis de mercado similar à adotada há anos pela Microsoft, que, ao vender o seu Xbox a um custo abaixo do que correspondente à sua produção, aceita de bom grado o ‘prejuízo’ inicial que virá a ser mais do que compensado através da venda de jogos e afins para o console em formato de mídia digital na sua Microsoft Store—sendo intitulada a 30% do valor de cada compra ali realizada. Em outras palavras, o objetivo de Zuckerberg é, com isso, tornar os meios de acesso ao metaverso tão rentáveis e imediatos à população global quanto, digamos, vacinas da Pfizer, a fim de ‘democratizar’ a plataforma para que, só depois, haja nela a incidência de um consumo em massa. Assim, proporcionar a todos a experiência deste ‘novo mundo’ não é, primariamente, uma questão de lucro, mas de filantropia, uma vez que o metaverso é o futuro do qual todos deverão fazer parte e no qual todos deverão consumir, querendo ou não.

A jogada de mestre de Zuckerberg foi, já em 2014—ano em que o metaverso já encontrava-se em obstinado desenvolvimento—, adquirir a Oculus, maior produtora global de equipamentos de realidade virtual e responsável, em 2020, por mais de 50% das vendas correspondentes à sua área de atuação. Em 2021, com o anúncio do metaverso e a decorrente defasagem programada no custo de seus produtos à la Microsoft, a fatia já generosa da Oculus no mercado inflou-se para cerca de 75%.Portanto, afirmar que o metaverso não vingará na periferia ocidental tão cedo em função de atrasos técnicos e subdesenvolvimento econômico configura uma ingenuidade comparável à da velha crença leiga de que smartphones, tablets e internet sem fio também chegariam com muito atraso em relação aos desenvolvidos. A existência, na época, de interesses tecnocráticos ligeiramente similares aos de Zuckerberg no atual contexto e da fatal necessidade de subordinação de países periféricos aos fluxos socioeconômicos globais provou aos céticos de outrora que estavam errados a respeito do exemplo supracitado, e o mesmo ocorrerá com os nossos atuais céticos do metaverso.

Ruy Mauro Marini, um dos expoentes da teoria da dependência

A teoria da dependência brasileira, apesar de todas as subversões que sofreu com o tempo, é de uma atualidade intocável; a subordinação terceiro-mundista às grandes potências econômicas no que refere-se às relações de trabalho e à técnica exige que elas andem, tanto quanto possível, de mãos dadas com esses grandes poderes e sigam à risca os fluxos por eles ditados (formalmente ou não). O favor demonstrado pelo Fórum Econômico Mundial à ideia da utilização dum universo virtual paralelo como alicerce para um novo modelo de globalização essencial ao mundo pós-COVID-19 que tanto serve aos seus interesses claramente sugere que a adesão ao metaverso por parte dos periféricos, longe de ser um mero luxo modernizador, se tornará uma questão de sobrevivência geopolítica na esfera ocidental, uma vez que trata-se também de uma ferramenta de trabalho, como apontou o próprio Zuckerberg ao solenemente anunciar-nos o seu Frankenstein. Tal empenho de adesão ditará o ‘valor’ e a ‘dignidade’ das nações através da capacidade de complacência que elas virão a demonstrar para com as instituições da ordem global vigente, da mesma forma que o empenho de adesão a políticas de vacinação de curta testagem em massa, que configurou complacência para com a agora-quase-onipotente Organização Mundial da Saúde, ditou e ainda dita.

Assim, o esforço pela modernização através do metaverso nos países periféricos se assemelhará a uma espécie de ‘corrida do espaço’ terceiro-mundista do século XXI. Mesmo aqueles estados que, inseridos na esfera ocidental, sequer dispõem dos meios técnicos básicos, do interesse particular e do capital necessários para uma revolução tão radical nas relações socioeconômicas serão obrigados a, como de costume, fazer empréstimos internacionais e adotar medidas internas impopulares para que seja possível realizá-la. Tudo indica que, num cenário previsível de complacência, 10 anos já seja uma projeção muito conservadora no que concerne à consolidação integral do império de Zuckerberg no Brasil e vizinhos.

É o estágio final do persistente western way of life e a aurora duma época subsequente à do capitalismo global como o conhecemos; um sistema que, na completa contramão do que previra Marx, não demonstrou quaisquer sinais de debilidade ou colapso em face das suas infinitas contradições. Os desdobramentos do dito sistema, contudo, confirmaram o que observara Deleuze ao afirmar que “Nunca uma discordância ou um disfuncionamento anunciaram a morte duma máquina social que, muito pelo contrário, se alimenta habitualmente das contradições que cria, das crises que suscita, da angústia que engendra e das operações infernais que a revigoram: o capitalismo aprendeu isso e deixou de duvidar de si, e até os socialistas deixaram de acreditar na sua morte natural por usura. As contradições nunca mataram ninguém—e quanto mais isto se desequilibrar, quanto mais se esquizofrenizar, melhor há de funcionar, à americana.” Trata-se dum mix inteiramente insípido e despolitizado (no sentido schmittiano da palavra) cuja práxis é guiada pelos mais deploráveis estilhaços ideológicos de todos os cantos possíveis do espectro, muito seguro e consciente da sua própria falta de coerência e da multiplicidade complexa de formas com as quais pode ser interpretado através das lentes da eterna e confortável dualidade liberal, cuja radicalidade é exclusivamente atrelada ao discurso inflamado reproduzido pelas massas histéricas e pela elite pseudointelectual burguesa e romântica que habitam os jornais, o Twitter e os campi.

Já passou da hora de escapar de vez de tal armadilha, tão espiritual quanto socioeconômica, replicando e alinhando-se ao exemplo de nações soberanas, tanto na técnica quanto na política, como a China, cujo governo visa a saúde mental e espiritual dos próprios cidadãos ao restringir o tempo de acesso a universos virtuais e premiar aqueles que logram forjar conexões humanas concretas, e a Rússia, que, também desde 2014, vem aumentando sua força na composição acionária do VK, maior rede social no país, passando, desde o início de dezembro, a deter mais de 50% das ações da empresa num claro movimento de defesa nacional que assegura a sua própria independência digital. Queremos também uma nação de riquezas concretas, não virtuais, que valorize o seu próprio ethos e alinhe-se somente àquilo que serve aos seus próprios interesses, ao bem-estar existencial do seu povo e à construção de seu lugar ao sol.

Ainda é possível garantir que o destino trágico e autodestrutivo do Ocidente faustiano, anunciado através das lentes lucidamente pessimistas de Spengler, não nos diga respeito e para que a cega e positivista ideologia burguesa do ‘progresso pelo progresso,’ denunciada por Sorel e atualmente encarnada no fetichismo futurista de bilionários tecnocratas, seja empurrada de volta para os confins da literatura de ficção-científica. A luta conta a consolidação da Meta como intermediária da vida e das relações humanas em sua totalidade é—muito mais do que uma questão de soberania e com o perdão do trocadilho—metafísica. Cabe a nós decidirmos, enquanto há tempo, se queremos ou não cair nessa armadilha ‘perfeita’ e sem volta de desumanização, isolamento e subserviência.

Simplesmente diga ‘não!’