Cúpula de Kazan: Um Passo a Mais para a Multipolaridade

01.11.2024
Após o término da Cúpula de Kazan é necessário analisar os resultados do projeto de construção de um mundo multipolar a partir dos BRICS.

Encerrados os trabalhos da Cúpula dos BRICS em Kazan, torna-se agora necessário analisar a sua significância geopolítica, bem como os seus resultados.

Em primeiro lugar, contando com quase 40 países e mais de 20 Chefes de Estado, a cúpula demonstra que a tentativa de isolamento da Rússia e de Putin pelo Ocidente fracassou. Havia até membro da OTAN fazendo-se presente no evento.

A Rússia segue sendo um dos principais atores nas relações internacionais, e a sua relevância, hoje, é bem maior do que antes da tempestade de sanções e tentativas de cancelamento. As suas relações estão mais multifacetadas, pluridirecionais e complexas, e a maioria dos países que intensificaram as suas relações com a Rússia resistiram às pressões de abandoná-la.

Em segundo lugar, o tópico favorito da maioria das pessoas é o ingresso de novos membros na plataforma. Mas esse ano nenhum país foi convidado a ingressar como membro pleno nos BRICS. Tal como solicitado por alguns países (como o Brasil) deu-se preferência a uma maior formalização dos mecanismos de ingresso e decidiu-se pela criação de um “estágio intermediário” entre não-membro e membro pleno, a categoria de “Estado parceiro” ou “Estado associado”.

Os países com a categoria de “Estado parceiro” podem ser considerados como estando “a meio caminho” de entrar para os BRICS, de modo que acreditamos que pelo menos alguns deles já seriam convidados para ingressar oficialmente na próxima Cúpula, a ser realizada no Brasil.

13 países foram convidados a se tornarem “Estados parceiros” dos BRICS nessas condições: Argélia, Belarus, Bolívia, Cuba, Indonésia, Cazaquistão, Malásia, Nigéria, Tailândia, Turquia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã. Naturalmente, esses convites terão que ser confirmados nos respectivos países, conforme os próprios mecanismos decisórios de cada um deles.

Recordamos, por exemplo, que o Cazaquistão recentemente declarou não estar interessado em ingressar nos BRICS tão cedo. E que a Indonésia havia solicitado adesão, mas, em seguida, voltou atrás. É possível, porém, que eles aceitem o status de “parceiro”, recusando-se a participação plena no futuro. Ademais, a Índia parece pretender bloquear o ingresso da Turquia na plataforma. Considerando, porém, o anúncio que inclui o nome da Turquia, imaginamos que o veto da Índia resume-se ao ingresso pleno futuro.

Praticamente todos os convites são perfeitamente compreensíveis, mas insistimos na falta que faz a Venezuela. Importantíssimo país petrolífero, a Venezuela representa também um importante parceiro para a defesa da Amazônia e para a proteção do Rimland continental.

O veto brasileiro (derivado da atuação do Brasil como preposto ocidental na função de “guardião da democracia” no continente), aparentemente, impediu até mesmo o ingresso da Venezuela como país parceiro da plataforma, o que é irracional diante da participação da Turquia. Felizmente, a indicação brasileira para o bloco, a Colômbia, não foi nem mesmo cogitada.

No que concerne declarações institucionais, é interessante a existência simultânea de um discurso protocolar previsível nos textos oficiais da Cúpula, em que não se vai além da defesa de uma reforma profunda de todas as instituições mundiais, das secretarias e Conselho de Segurança da ONU ao FMI, passando pela OMC e todo o resto – mas ao mesmo tempo nos discursos e declarações dos líderes mundiais presentes, notava-se um cansaço em relação às mesmas instituições. O Presidente Irã, Pezeshkian, por exemplo, foi bastante claro eu apontar a inutilidade da ONU. Outros comentários semelhantes foram feitos por outros líderes sobre a ONU como um todo ou sobre organismos internacionais específicos, como o a Corte Internacional de Justiça.

A impressão que se tem é de uma intenção de seguir insistindo na reforma dos organismos internacionais, mas sem esperar; ou seja, já construindo alternativas a esses mesmos organismos através dos BRICS.

É bastante contundente a posição dos BRICS sobre a questão Israel-Palestina. A Declaração de Kazan condena o ataque israelense às instalações diplomáticas iranianas na Síria, a presença de forças estrangeiras na Síria, o atentado terrorista israelense em Beirute, os crimes de Israel em Gaza, os ataques ao Líbano, e ao contrário das posições ocidentais, demanda a necessidade de libertação dos reféns palestinos sequestrados por Israel, e não apenas a devolução dos prisioneiros israelenses capturados pela Resistência Palestina.

A posição vai na mesma direção das propostas levadas pela Rússia ao Conselho de Segurança da ONU, as quais foram vetadas pelos EUA.

Outro âmbito que é bastante discutido, que é o econômico, traz uma série de proposta, mas todas são trabalhos em andamento, e que dizem respeito a processos, e não a mudanças definitivas. Por exemplo, se declara a intenção de avançar na ampliação do comércio em moedas locais, apontando ainda que os BRICS estão desenvolvendo mecanismos para tornar o comércio mais rápido e mais transparente.

Existe a novidade do BRICS Clear, que vai ser um mecanismo internacional de liquidação e depósito, que se soma a outros mecanismos já existentes, como o Acordo de Reservas Contingentes, que serve para amortecer impactos nas balanças de pagamento, ou em andamento, como o BRICS Bridge, que é um projeto de construção de infraestrutura de pagamentos. Existe ainda a Bolsa de Grãos dos BRICS, cujo objetivo seria estabilizar preços no setor agrícola para garantir a vitalidade da agropecuária dos países-membros, bem como a segurança alimentar mundial.

É interessante ainda que, enquanto se defende a importância de um meio ambiente equilibrado, se criticam os mecanismos de “compensação de carbono” tal como têm sido propostos pelo Ocidente, afirmando ainda que é necessário estudar melhor esse tópico; e se submete toda a questão ambiental e da transição energética às condições e interesses soberanos de cada país. Cada país deve decidir como e quando garantir a defesa do seu meio ambiente, bem como em que medida a “transição energética” é ou não é prioridade.

De um modo geral, observa-se que os BRICS estão caminhando na direção correta como o núcleo de reformulação revolucionária de toda a estrutura geopolítica da ordem mundial liberal imposta em escala mundial após o fim da Guerra Fria.

Em geral, os “críticos” dos BRICS reclamam de uma “falta de resultados” e inventam um “excesso de expectativas” em relação à plataforma. Nisso eles estão inventando um espantalho, que é o de que alguém está esperando mudanças radicais e repentinas para amanhã.

Ao contrário, todo este processo de transição geopolítica capitaneado pelos BRICS terá os seus resultados visíveis em um espaço cronológico que está entre 10 e 40 anos no futuro, acompanhando também o ritmo de corrosão da própria unipolaridade e dos EUA como núcleo da ordem liberal.

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