Multipolaridade: A Definição e a Diferenciação entre seus Significados

10.07.2018

Mais e mais obras sobre relações exteriores, política mundial, geopolítica, e atualmente, política internacional, são dedicadas ao tema da multipolaridade. Um número crescente de autores tentam compreender e descrever a multipolaridade como um modelo, fenômeno, precedente ou possibilidade.
O típico da multipolaridade foi tocado, de uma maneira ou de outra, nas obras do especialista em relações internacionais David Kampf (no artigo, "A Emergência de um Mundo Multipolar"), do historiador Paul Kennedy da Universidade de Yale (em seu livro, "A Ascensão e Queda das Grandes Potências"), do geopolítico Dale Walton (no livro, "Geopolítica e as Grandes Potências no Século XXI: Multipolaridade e a Revolução em Perspectiva Estratégica"), do cientista político americano Dilip Hiro (no livro, "Após o Império: Nascimento de um Mundo Multipolar"), e outros. O mais próximo da compreensão do sentido da multipolaridade, em nossa opinião, foi o especialista britânico em RI Fabio Petito, que tentou construir uma alternativa séria e substanciada ao mundo unipolar com base nos conceitos legais e filosóficos de Carl Schmitt.
A "ordem mundial multipolar" também é repetidamente mencionada nos discursos e escritos de figuras políticas e jornalistas influentes. Foi assim que a ex-Secretária de Estado Madeleine Albright, que primeiro chamou os EUA de a "nação indispensável", afirmou em 2 de fevereiro de 2000, que os EUa não querem "estabelecer e impôr" um mundo unipolar, e que a integração econômica já criou "um certo mundo que pode até ser chamado multipolar". Em 26 de janeiro de 2007, na coluna editorial do "The New York Times", foi escrito abertamente que a "emergência do mundo multipolar", junto com a China, "agora assume lugar na mesa em paralelo com outros centros de poder como Bruxelas ou Tóquio". Em 20 de novembro de 2008, no relatório "Tendências Globais 2025", do Conselho de Inteligência Nacional dos EUA, foi indicado que a emergência de um "sistema global multipolar" podia ser esperada para dentro das próximas duas décadas.
Desde 2009, o Presidente americano Barack Obama foi visto por muitos como o arauto de uma "era de multipolaridade", acreditando que ele orientaria a prioridade da política externa americana para potências ascendentes como Brasil, China, Índia e Rússia. Em 22 de julho de 2009, o Vice-Presidente Joseph Biden, durante sua visita à Ucrânia, disse: "Estamos tentando construir um mundo multipolar".
E ainda assim, todos estes livros, artigos e declarações não contém qualquer definição precisa do que o mundo multipolar é, nem, ademais, uma teoria coerente e consistente de sua construção. O tratamento mais comum para a "multipolaridade" significa apenas uma indicação de que no atual processo de globalização, o centro indisputável e o núcleo do mundo moderno (os EUA, Europa e o "Ocidente global") se depara com certos competidores novos - potências regionais prósperas ou simplesmente poderosas e blocos de poder pertencendo ao "Segundo" Mundo. Uma comparação dos potenciais dos EUA e da Europa por um lado, e das novas potências ascendentes (China, Índia, Rússia, América Latina, etc.) pelo outro lado, convence mais e mais da superioridade tradicional relativa do Ocidente e levanta novas questões sobre a lógica de processos ulteriores que determinam a arquitetura global de forças em escala planetária - na política, na economia, na energia, na demografia, na cultura, etc.
Todos esses comentários e observações são críticos para construir a Teoria do Mundo Multipolar, mas de forma alguma suprem sua ausência. Eles devem ser levados em consideração na construção dessa teoria, mas vale a pena notar que eles são fragmentários, não alcançando nem o nível primário de generalizações conceituais teóricas.
Mas, apesar disso, a referência à ordem mundial multipolar é ouvida com frequência cada vez maior em encontros oficiais e conferências e congressos internacionais. Elos com a multipolaridade estão presentes em vários acordos intergovernamentais importantes e nos textos de segurança nacional e conceitos de estratégia de defesa de vários países poderosos e influentes (China, Rússia, Irã, e parcialmente a União Europeia). Portanto, hoje mais do que nunca, é importante dar um passo na direção de iniciar um desenvolvimento pleno da Teoria do Mundo Multipolar, segundo as exigências básicas do rigor acadêmico.
A multipolaridade não coincide com o modelo nacional de organização mundial segundo a lógica do sistema vestfaliano
Antes de prosseguirmos para a construição da Teoria do Mundo Multipolar, nós deveríamos distinguir estritamente a área conceitual investigada. Para isso, devemos considerar os conceitos básico e definir aquelas formas da ordem mundial global que certamente não são multipolares e perante as quais, assim sendo, a multipolaridade é apresentada como alternativa.
Vamos começar com o sistema vestfaliano, que reconhece a soberania absoluta do Estado-Nação e constroi o campo legal das Relações Internacionais sobre essa base. Este sistema, desenvolvido após 1648 (o fim da Guerra dos Trinta anos na Europa), pasou por várias fases de desenvolvimento, e em alguma medida continuou a refletir a realidade objetiva até o fim da Segunda Guerra Mundial. Ele nasceu da rejeição das reivindicações dos impérios medievais a um universalismo e à "missão divina", e correspondia com as reformas burguesas em sociedades europeias. Ele também estava baseado na pressuposição de que apenas um Estado-Nação pode possuir máxima soberania, e que fora dela não há outra entidade que teria o direito legal de interferir na política interna desse Estado - independentemente de que objetivos e missões (religiosa, política, ou outra) o guiassem. De meados do século XVII a meados do século XX, este princípio predeterminou a política europeia e, assim sendo, foi transferido a outros países do mundo com certas emendas.
O sistema vestfaliano foi originalmente relevante apenas para potências europeias, e suas colônias eram consideradas meramente como sua continuação, não possuindo potencial político e econômico suficiente para pretenderem ser entidades independentes. Desde o início do século XX, o mesmo princípio foi estendido às ex-colônias durante o processo de descolonização.
Este modelo vestfaliano assume igualdade legal plena entre todos os Estados soberanos. Neste modelo, há tantos pólos de decisão de política externa no mundo quanto Estados soberanos. Por inércia, essa regra ainda está em vigor, e todo o direito internacional se baseia nela.
Na prática, é claro, há desigualdade e subordinação hierárquica entre vários Estados soberanos. Na Primeira e Segunda Guerras Mundiais, a distribuição de poder entre as maiores potências mundiais levou a um confronto entre blocos separados, onde as decisões foram tomadas no país que fosse o mais poderoso entre seus aliados.
Como resultado da Segunda Guerra Mundial, devido à derrota da Alemanha nazista e das Potências do Eixo, o esquema bipolar de relações internacionais (o sistema bipolar de Yalta) se desenvolveu no sistema global. O direito internacional continuou a reconhecer a soberania absoluta de qualquer Estado-Nação, mas as decisões básicas, de facto, sobre as questões centrais da ordem mundial e da política global passaram a ser feitas apenas em dois centros - em Washington e em Moscou.
O mundo multipolar difere do sistema tradicional vestfaliano pelo fato de que não reconhece o Estado-Nação separado, legalmente e formalmente soberano, como tendo o status de pólo de pleno direito. Isso significa que o número de pólos em um mundo multipolar deve ser substancialmente menor do que o número de Estados-Nações reconhecidos (e, portanto, não-reconhecidos). A grande maioria desses Estados não é capaz hoje de prover sua própria segurança ou prosperidade em face de um conflito teoricamente possível com o atual Hegemon (os EUA). Portanto, eles são politicamente e economicamente dependentes de uma autoridade externa. Sendo dependentes, eles não podem ser os centros de uma vontade verdadeiramente independente e soberana sobre as questões globais da ordem mundial.
A multipolaridade não é um sistema de relações internacionais que insiste na igualdade jurídica dos Estados-Nação como a situação real e factual. Esta é apenas uma fachada de uma imagem muito diferente do mundo baseada em um equilíbrio de forças e capacidades estratégicas reais, ao invés de nominais.
A multipolaridade opera não com a situação existente de jure, mas com a de facto, e decorre da declaração da desigualdade fundamental entre Estados-nações no modelo moderno e empiricamente fixável do mundo. Além disso, a estrutura desta desigualdade é que as potências secundárias e terciárias não são capazes de defender sua soberania, em qualquer configuração de bloco transitório, diante do possível desafio externo pela potência hegemônico. Isso significa que a soberania é uma ficção legal hoje.
Multipolaridade não é Bipolaridade
Após a Segunda Guerra Mundial, o sistema bipolar de Yalta foi desenvolvido. Ele continuou a insistir formalmente no reconhecimento da soberania absoluta de todos os Estados, o princípio sob o qual a ONU foi organizada, e prosseguiu o trabalho da Liga das Nações. No entanto, na prática, dois centros de tomada de decisão global apareceram no mundo - os EUA e a URSS. Os EUA e a URSS foram dois sistemas político-econômicos alternativos, respectivamente o capitalismo global e o socialismo global. Foi assim que a bipolaridade estratégica foi fundada no dualismo ideológico e filosófico - o liberalismo contra o marxismo.
O mundo bipolar baseou-se na comparabilidade simétrica do potencial de paridade econômica e estratégico-militar dos campos beligerantes americano e soviético. Ao mesmo tempo, nenhum outro país afiliado a um determinado campo remotamente tinha o poder acumulado para se comparar com o de Moscou ou Washington. Consequentemente, havia dois hegemons na escala global, cada um cercado por uma constelação de países aliados (semi-vassalos, em sentido estratégico). Neste modelo, a soberania nacional formalmente reconhecida perdeu gradualmente seu peso. Em primeiro lugar, os países associados com um ou outro hegemon eram dependentes das políticas daquele pólo. Portanto, o referido país não era independente, e os conflitos regionais (geralmente desenvolvidos em áreas do Terceiro Mundo) rapidamente se intensificaram em um confronto de duas superpotências que procuravam redistribuir o equilíbrio da influência planetária nos "territórios em disputa". Isso explica os conflitos na Coréia, Vietnã, Angola, Afeganistão, etc.
No mundo bipolar, havia também a terceira força - o Movimento Não-Alinhado. Consistia em alguns países do Terceiro Mundo que se recusaram a fazer uma escolha inequívoca em favor do capitalismo ou do socialismo, e que, em vez disso, preferiram manobrar entre os interesses antagônicos globais dos EUA e da URSS. Até certo ponto, alguns conseguiram, mas a própria possibilidade de não-alinhamento assumia a existência de dois pólos, que em um grau variável se equilibravam entre si. Além disso, esses "países não-alinhados" não conseguiram criar um "terceiro pólo" devido aos principais parâmetros das superpotências, à natureza fragmentada e não consolidada dos membros do Movimento Não-Alinhado e à falta de qualquer plataforma socioeconômica comum. O mundo foi dividido em o Ocidente capitalista (o primeiro mundo), o Oriente socialista (o segundo mundo) e o "resto" (o Terceiro Mundo). Além disso, "todos os outros" em todos os sentidos representavam a periferia mundial onde os interesses das superpotências ocasionalmente apareciam. Entre as próprias superpotências, a probabilidade de conflito foi quase excluída devido à paridade (especificamente na garantia de destruição nuclear mútua). Isso fez com que as áreas preferenciais para a revisão parcial do equilíbrio de poder fossem os países perifericos (Ásia, África, América Latina).
Após o colapso de um dos dois pólos (a União Soviética entrou em colapso em 1991), o sistema bipolar também entrou em colapso. Isso criou as pré-condições para o surgimento de uma ordem mundial alternativa. Muitos analistas e especialistas em RI falaram com razão sobre "o fim do sistema de Yalta". Enquanto de jure reconhecendo a soberania, a Paz de Yalta foi construída de facto com base no princípio do equilíbrio de dois hegemons simétricos e relativamente iguais. Com a partida de um dos hegemons da cena histórica, todo o sistema deixou de existir. Chegou o momento de uma ordem mundial unipolar ou "momento unipolar".
Um mundo multipolar não é um mundo bipolar (como o conhecemos na segunda metade do século XX), porque no mundo de hoje, não há potência que possa resistir sozinho ao poder estratégico dos Estados Unidos e dos países da OTAN e, além disso, não existe uma ideologia generalizada e coerente capaz de unir uma grande parte da humanidade em uma oposição ideológica dura à ideologia da democracia liberal, do capitalismo e dos "direitos humanos", nos quais os Estados Unidos agora estabelecem uma nova hegemonia única . Nem a Rússia moderna, a China, a Índia ou algum outro Estado podem fingir ser um segundo pólo nestas condições. A recuperação da bipolaridade é impossível devido ao apelo ideológico (o fim do apelo popular do marxismo) e por razões técnico-militares. Quanto aos últimos, os países dos EUA e da OTAN assumiram a liderança tanto nos últimos 30 anos que a concorrência simétrica com eles nas esferas militar, estratégica, econômica e técnica não é possível para nenhum único país.
 
A Multipolaridade não é Compatível com um Mundo Unipolar
O colapso da União Soviética significou o desaparecimento de uma superpotência simétrica e poderosa, bem como de um gigantesco campo ideológico. Foi o fim de uma das duas hegemonias globais. Toda a estrutura da ordem mundial a partir deste ponto é irreversivel e qualitativamente diferente. Aqui, o pólo remanescente - liderado pelos Estados Unidos e com base na ideologia capitalista liberal-democrática - é preservado como fenômeno e continuou a expandir seu sistema sociopolítico (democracia, mercado, ideologia dos "direitos humanos") em uma escala global. Precisamente, isso é chamado de mundo unipolar ou ordem mundial unipolar. Em tal mundo, existe um único centro de tomada de decisão sobre grandes questões globais. O Ocidente e seu núcleo, a comunidade euroatlântica, liderada pelos Estados Unidos, se encontraram no papel da única hegemonia disponível remanescente. Todo o espaço do planeta em tal ambiente é uma tripla regionalização (descrita detalhadamente pela teoria neomarxista de E.Wallerstein):
 - Zona central ("Norte rico", "centro"), - Área da periferia mundial ("Sul pobre", "periferia"), - Zona de transição ("semiperiferia", incluindo países importantes, desenvolvendo-se ativamente na direção do capitalismo: China, Índia, Brasil, alguns países do Pacífico, bem como a Rússia, por inércia preservando potencial estratégico, econômico e energético significativos).
O mundo unipolar parecia finalmente ser uma realidade estabelecida na década de 1990, e alguns analistas dos EUA declararam, com base nisso, a tese do "fim da história" (Fukuyama). Esta tese significava que o mundo se tornaria totalmente ideologicamente, politicamente, economicamente e socialmente homogêneo, e que agora todos os processos ocorrendo nela não serão mais um drama histórico baseado na batalha de idéias e interesses, mas sim uma competição econômica (e relativamente pacífica) de participantes do mercado - semelhante à forma como a política interna dos regimes liberais democráticos livres é construída. Nessa compreensão, a democracia se torna global e o planeta é composto apenas do Ocidente e de sua periferia (ou seja, os países que se integrarão gradualmente).
O design mais preciso da teoria da unipolaridade foi proposto pelos neoconservadores americanos, que enfatizaram o papel dos EUA na Nova Ordem Mundial global. Às vezes, proclamavam os Estados Unidos como o "Novo Império" (R. Kaplan) ou a "hegemonia global benevolente" (U. Kristol, R. Kagan), antecipando a ofensiva do "Século Americano" (O Projeto para o Novo Século Americano). Na visão neocon, a unipolaridade adquiriu uma base teórica. A ordem mundial futura era vista como uma construção centrada nos EUA, onde o núcleo é o EUA enquanto árbitro global e encarnação dos princípios de "liberdade e democracia" e uma constelação de outros países está estruturada em torno deste centro, reproduzindo o modelo americano com vários graus de precisão. Eles variam em geografia e em seu grau de similaridade com os Estados Unidos:
 - Primeiro, o círculo íntimo - países da Europa e do Japão, - Em segundo lugar, os países liberais prósperos da Ásia, - Finalmente, o resto.
Todas as zonas localizadas em torno da "América Global", independentemente da sua órbita política, estão incluídas no processo de "democratização" e "americanização". A disseminação dos valores americanos vai em paralelo com a implementação de interesses práticos americanos e a expansão da zona de controle americano direto em escala global.
No nível estratégico, a unipolaridade é expressada no papel central dos EUA na OTAN e, além disso, na superioridade assimétrica das capacidades militares combinadas dos países da OTAN sobre todas as outras nações do mundo.
Paralelamente a isso, o Ocidente é superior a outros países não-ocidentais em seu potencial econômico, no nível de desenvolvimento de alta tecnologia, etc. O mais importante: O Ocidente é a matriz onde o sistema estabelecido de valores e normas que atualmente são considerados como o padrão universal para todos os outros países do mundo foi formado historicamente. Isso pode ser chamado de a hegemonia intelectual global a qual, por um lado, mantém a infraestrutura técnica para o controle global e, por outro lado, está no centro do paradigma planetário dominante. A hegemonia material acompanha as hegemonias espiritual, intelectual, cognitiva, cultural e informacional.
Em princípio, a elite política americana é guiada precisamente por essa abordagem hegemônica conscientemente percebida, no entanto, ela é claramente e transparentemente mencionada pelos neoconservadores, enquanto representantes de outras direções políticas e ideológicas preferem expressões mais racionalizadas e eufemismos. Mesmo os críticos do mundo unipolar nos Estados Unidos não desafiam o princípio da "universalidade" dos valores americanos e o desejo de sua aprovação a nível global. As objeções são focadas em que medida este projeto é realista a médio e longo prazo, e se os EUA são capazes de suportar o peso do império global mundial sozinhos.
Os desafios a tal domínio americano direto e aberto, que parecia ser um fato consumado na década de 1990, levaram alguns analistas americanos (especificamente Charles Krauthammer, que introduziu esse conceito) a postular sobre o fim do "momento unipolar".
Mas, apesar de tudo, é exatamente a unipolaridade em uma ou outra manifestação - aberta ou encoberta, o modelo da ordem mundial - que se tornou realidade depois de 1991 e permanece até hoje.
Na prática, a unipolaridade está lado a lado com a economia nominal do sistema vestfaliano, que ainda contém os restos inerciais do mundo bipolar. A soberania de todos os Estados-nações ainda é reconhecida de jure, e o Conselho de Segurança da ONU ainda reflete parcialmente o equilíbrio de poder correspondente às realidades da "Guerra Fria". Assim, a hegemonia unipolar americana é presente de facto, juntamente com uma série de instituições internacionais que expressam o equilíbrio de outras eras e ciclos na história das relações internacionais. O mundo é constantemente lembrado das contradições entre a situação de jure e de facto, especialmente quando a coalizão dos Estados Unidos ou do Ocidente intervém diretamente nos assuntos de Estados soberanos (algumas vezes, até contornando o veto de instituições como o Conselho de Segurança da ONU) . Em casos como a invasão americana do Iraque em 2003, vemos um exemplo de uma violação unilateral do princípio da soberania do Estado (ignorando o modelo vestfaliano), a recusa em levar em consideração a posição da Rússia (Vladimir Putin) no Conselho de Segurança da ONU e as francas objeções dos parceiros de Washington na OTAN (Jacques Chirac da França e Gerhard Schroeder da Alemanha).
Os apoiantes mais consistentes da unipolaridade (por exemplo, o republicano John McCain) insistem na aplicação da ordem internacional de acordo com o equilíbrio real das forças. Eles oferecem a criação de um modelo bastante diferente do que a ONU, a "Liga das Democracias", em que a posição dominante dos EUA, ou seja, a unipolaridade, teria sido legislada. A legalização de um mundo unipolar e o status hegemônico do "Império Americano" na estrutura de relações internacionais pós-Yalta é uma das possíveis direções da evolução do sistema político global.
É absolutamente claro que uma ordem mundial multipolar não só difere da unipolar, mas é sua antítese direta. A unipolaridade assume uma hegemonia e um centro de tomada de decisão, enquanto a multipolaridade insiste em alguns centros, sendo que nenhum deles possui direitos exclusivos e, portanto, tem que levar em consideração as posições dos outros. A multipolaridade, portanto, é uma alternativa lógica direta à unipolaridade. Não pode haver compromisso entre elas: sob as leis da lógica, o mundo é unipolar ou multipolar. Desde então, não é importante como esse modelo particular está legalmente formulado, mas como é criado de facto. Na era da "Guerra Fria", diplomatas e políticos relutantes reconheceram a "bipolaridade", que era um fato óbvio. Portanto, é necessário separar a linguagem diplomática da realidade concreta. O mundo unipolar é a ordem mundial factual até a data de hoje. Só se pode discutir se ela é boa ou ruim, se ela é o alvorecer do sistema ou, alternativamente, o pôr-do-sol, e se ela vai durar muito tempo ou, ao contrário, acabar rapidamente. De qualquer forma, o fato permanece fato. Vivemos em um mundo unipolar, e o momento unipolar ainda dura (embora alguns analistas estejam convencidos de que está chegando ao fim).
O Mundo Multipolar não é um Mundo Apolar
Os críticos americanos da unipolaridade rígida e, especialmente, os rivais ideológicos dos neoconservadores concentrados no "Conselho de Relações Exteriores", ofereceram outro termo em vez de a unipolaridade - a apolaridade. Esse conceito baseia-se na sugestão de que os processos de globalização continuarão a se desenrolar, e o modelo ocidental da orden mundial expandirá sua presença para todos os países e povos da Terra. Assim, a hegemonia intelectual e a hegemonia dos valores do Ocidente continuarão. O mundo global será o mundo do liberalismo, da democracia, dos mercados livres e dos direitos humanos, mas o papel dos EUA como uma potência nacional e carro-chefe da globalização, de acordo com os proponentes desta teoria, encolherá. Em vez de uma hegemonia direta americana, surgirá um modelo de "governo mundial". Este será auxiliado por representantes de diferentes países, mantendo-se unidos com valores comuns e buscando estabelecer um espaço sociopolítico e econômico unido em todo o mundo. Aqui novamente, estamos lidando com um análogo do "fim da história" de Fukuyama descrito em termos diferentes.
O mundo apolar será baseado na cooperação entre os países democráticos (como padrão), mas, gradualmente, o processo de formação também deve incluir atores não-estatais - ONGs, movimentos sociais, grupos de cidadãos separados, comunidades em rede, etc.
A principal característica na construção do mundo apolar é a dissipação da tomada de decisão de uma entidade (agora Washington) para as muitas entidades do nível inferior - até os referendos planetários online sobre os principais eventos e ações que afetam toda a humanidade.
A economia substituirá a política e a concorrência no mercado varrerá todas as barreiras alfandegárias dos países. O Estado ficará mais preocupado com o cuidado de seus cidadãos do que com a segurança tradicional, e dará início à era da democracia global.
Essa teoria coincide com as principais características da teoria da globalização e se apresenta como um estágio para a substituição do mundo unipolar, mas apenas nas condições promovidas hoje pelos países dos EUA e ocidentais em relação aos seus aspectos sociopolíticos, tecnológicos e modelos econômicos (democracia liberal). Estes e seus valores se tornarão um fenômeno universal, e a necessidade de proteção estrita dos ideais democráticos e liberais não existirá mais - todos os regimes que resistem ao Ocidente, à democratização e à americanização no momento do início do mundo apolar devem ser eliminados.
A elite de todos os países deve ser semelhante, homogênea, capitalista, liberal e democrática - em outras palavras, "ocidental" - independentemente da origem histórica, geográfica, religiosa e nacional.
O projeto do mundo apolar é apoiado por inúmeros grupos políticos e financeiros muito poderosos, desde Rothschilds até George Soros e suas fundações.
Este projeto estrutural aborda o futuro. É pensado como uma formação global que deve substituir a unipolaridade e ser estabelecida depois dela. Esta não é uma alternativa, mas sim uma continuação, e só será possível à medida que o centro de gravidade da sociedade se mova da combinação atual de alianças de dois níveis de hegemonia - material (o complexo militar-industrial americano e a economia e recursos ocidentais) e espiritual (padrões, procedimentos, valores) - a uma hegemonia puramente intelectual, juntamente com a redução gradual da importância da dominação material.
Ou seja, esta é a sociedade global da informação, onde os principais processos de governo e domínio serão implantados no campo da inteligência através do controle das mentes, controle mental e da programação do mundo virtual.
O mundo multipolar não pode ser combinado com o modelo mundial apolar porque não aceita a validade do momento unipolar como um prelúdio para a futura ordem mundial, nem a hegemonia intelectual do Ocidente, a universalidade de seus valores ou a dissipação da tomada de decisões na multiplicidade planetária independentemente da identidade cultural e civilizadora preexistente. O mundo apolar sugere que o modelo multicultural americano será estendido ao mundo inteiro. Como resultado, isso irá apagar todas as diferenças entre povos e culturas, e uma humanidade individualizada e atomizada será transformada em uma "sociedade civil" cosmopolita sem fronteiras. A multipolaridade implica que os centros de tomada de decisão devem ser suficientemente elevados (mas não apenas nas mãos de uma única entidade - como é hoje sob as condições do mundo unipolar) e as especificidades culturais de cada civilização particular devem ser preservadas e fortalecidas (mas não dissolvidas em uma única multiplicidade cosmopolita).
Multipolaridade não é Multilateralismo
Outro modelo da ordem mundial, distanciado da hegemonia direta dos EUA, é um mundo multilateral (multilateralismo). Este conceito é muito difundido no Partido Democrata dos EUA e é formalmente associado à política externa da Administração do Presidente Obama. No contexto dos debates da política externa americana, essa abordagem opõe-se à insistência dos neoconservadores na unipolaridade.
Na prática, o multilateralismo significa que os EUA não devem atuar no campo das relações internacionais confiando inteiramente em sua própria força e tomando todos os seus aliados e "vassalos" como garantidos de uma maneira obrigatória. Em vez disso, Washington deve levar em conta a posição dos parceiros, persuadir e argumentar suas soluções sugeridas em diálogo igual com eles e trazê-les para o seu lado por meio de argumentos racionais e, às vezes, propostas de compromisso.
Os Estados Unidos em tal situação deveriam ser "primeiros entre os iguais", em vez de "ditador entre seus subordinados". Isso impõe à política externa dos Estados Unidos certas obrigações para  com aliados na política global e demanda obediência à estratégia geral. A estratégia global neste caso é a estratégia do Ocidente de estabelecer a democracia global, o mercado e a implementação da ideologia dos direitos humanos em escala global. Nesse processo, os EUA, sendo o líder, não devem equiparar diretamente seus interesses nacionais com os valores "universais" da civilização ocidental, em cujo nome eles atuam. Em alguns casos, é mais preferível operar em uma coalizão, e às vezes até fazer concessões aos seus parceiros.
O multilaterismo difere da unipolaridade pela ênfase no Ocidente em geral, e especialmente no seu componente "axiológico" (ou seja, o "normativo"). Sobre isso, os apologistas do multilateralismo convergem com aqueles que defendem o mundo apolar. A única diferença entre o multilateralismo e a apolarização é apenas o fato de que o multilateralismo coloca ênfase na coordenação dos países ocidentais democráticos entre si, e a apolaridade também inclui as autoridades não-estatais (ONGs, redes, movimentos sociais, etc.) como atores.
É significativo que, na prática, a política de multilateralismo de Obama, repetidamente expressada por ele e pela ex-Secretária de Estado Hillary Clinton, não é muito diferente da era imperialista direta e transparente de George W. Bush, durante a qual os neoconservadores eram dominantes. Continuaram as intervenções militares dos EUA (Líbia) e as tropas dos EUA mantiveram sua presença no Iraque e Afeganistão ocupados.
O mundo multipolar não coincide com a ordem mundial multilateral porque se opõe ao universalismo dos valores ocidentais e não reconhece a legitimidade do "Norte rico" - sozinho ou coletivamente - para agir em nome de toda a humanidade e servir como único centro de tomada de decisão na maioria dos principais problemas importantes.
Sumário
A diferenciação do termo "mundo multipolar" da cadeia de alternativas ou similares descreve o campo semântico em que continuaremos a construir a teoria da multipolaridade. Até este ponto, falamos apenas sobre o que a ordem mundial multipolar não é, negativas e próprias diferenciações, o que nos permite distinguir uma série de características constitutivas e bastante positivas.
Se generalizarmos essa segunda parte positiva, decorrentes da série de distinções feitas, obtemos aproximadamente essa imagem:
1. O mundo multipolar é uma alternativa radical ao mundo unipolar (que na verdade existe na situação atual) devido ao fato de que insiste na presença de alguns centros independentes e soberanos de tomada de decisão estratégica a nível global .
2. Estes centros devem estar suficientemente equipados e financeiramente e materialmente independentes para poder defender sua soberania diante de uma invasão direta de um potencial inimigo no nível material e a força mais poderosa do mundo hoje deve ser entendida como esta ameaça. Este requisito é reduzido à possibilidade de suportar a hegemonia financeira e militar-estratégica dos Estados Unidos e dos países da OTAN.
3. Esses centros de tomada de decisão não devem aceitar o universalismo dos padrões, normas e valores ocidentais (democracia, liberalismo, mercado livre, parlamentarismo, direitos humanos, individualismo, cosmopolitismo, etc.) e podem ser completamente independentes da hegemonia espiritual do Oeste.
4. O mundo multipolar não implica um retorno ao sistema bipolar porque hoje não existe uma única força estratégica ou ideológica que possa resistir sozinha à hegemonia material e espiritual do Ocidente moderno e seu líder, os Estados Unidos. Deve haver mais de dois pólos em um mundo multipolar.
5. O mundo multipolar não considera seriamente a soberania dos Estados-Nações existentes, que é declarada apenas em um nível puramente legal e não é confirmada pela presença de poder e potencial estratégico, econômico e político suficientes. No século XXI, já não é suficiente ser um Estado-Nação para ser uma entidade soberana. Nessas circunstâncias, a soberania real só pode ser alcançada por uma combinação e uma coalizão de Estados. O sistema vestfaliano, que continua a existir de jure, não reflete mais as realidades do sistema de relações internacionais e requer revisão.
6. A multipolaridade não é redutível à apolaridade nem ao multilateralismo porque não coloca o centro de tomada de decisão (pólo) no governo mundial, nem no clube dos EUA e seus aliados democráticos ("Ocidente global"), no nível de redes sub-estatais, ONGs e outras entidades da sociedade civil. Um pólo deve estar localizado em outro lugar.
Esses seis pontos definem todo o alcance para o desenvolvimento posterior da multipolaridade e incorporam os seus principais recursos. Embora esta descrição nos mova significativamente para a compreensão do ponto de multipolaridade, ainda é insuficiente para ser qualificada como uma teoria. Esta é apenas uma determinação inicial com a qual a teorização completa apenas começa.