As Imagens do Inimigo Político na Crise do Capitalismo

02.09.2024
Na ordem contemporânea que começa a desmoronar é fundamental identificar as manifestações do inimigo do projeto multipolar.

“A figura do inimigo é provavelmente o trunfo mais precioso do Ocidente em colapso”, afirma Fabio Vighi. Mesmo as celebrações do 80º aniversário do desembarque na Normandia durante a Segunda Guerra Mundial foram transformadas em “uma nova propaganda contra a Rússia, graças ao onipresente Volodymyr Zelensky”.

Vighi chama à reflexão sobre “a relação causal entre um império à beira da falência, em pânico, e um suposto inimigo que deve ser combatido – neste caso específico, até o último ucraniano (em detrimento dos vassalos europeus)”.

Graças aos especialistas e aos (falsos) meios de comunicação de poder, sabemos que a “desinformação russa” está por toda parte, mas e as “fake news” do Ocidente? Apesar de todas as sanções, a moeda russa se fortalece e a economia se desenvolve. “Não nos disseram que as sanções transformariam o rublo em papel higiênico, o que derrubaria Putin à maneira de Ceaușescu?”, pergunta Vighi.

Você pode ler todo tipo de sensacionalismo nas notícias, exceto que nosso desenvolvimento atual, ligado a um modelo econômico capitalista de exploração, não é tão sustentável. As economias ocidentais continuam sua corrida para baixo enquanto a inflação acelera, enquanto outros países se refugiam na aliança dos BRICS. Em nome de um estranho neoecologismo, a Finlândia também está derrubando florestas para abrir espaço para usinas solares.

A dominação do setor financeiro ocidental levou a um modelo de “criação destrutiva”, em vez da “destruição criativa” teorizada por Joseph Schumpeter. Isso significa que a elite ocidental de 0,1% “controla o capital elaborando cenários de catástrofe atribuíveis a um inimigo externo (um vírus, a Rússia, o Irã, a China ou a mudança climática)”.

O que se entende por “sustentabilidade”? Vighi esclarece que ela não tem nenhuma ligação com os objetivos da ONU – erradicar a pobreza e a fome, saúde e bem-estar, promover a igualdade e combater a mudança climática. “Infelizmente, esses são apenas distrações”, declara ele.

O “desenvolvimento sustentável” é antes um “modelo econômico elitista que permitirá a Wall Street alcançar patamares inéditos enquanto as pessoas comuns pagarão o preço desse sucesso com uma contração econômica real e uma queda no poder de compra”.

A questão para Vighi é a seguinte: “Estamos felizes em pagar pela proteção da riqueza dos ultrarricos e sua sombria visão de um ‘melhor dos mundos possíveis’?”

Após décadas de declínio constante, as economias ocidentais “avançadas” aceleram seu colapso enquanto lutam com a ilusão de superioridade, explorando a ameaça de inimigos externos.

Vighi afirma que durante cerca de três décadas após a Segunda Guerra Mundial, o sistema capitalista funcionou “agradando os produtores de mais-valia com a cenoura da mobilidade social e do consumo, e usando o bastão quando necessário”.

Uma coreografia suficientemente crível mascara uma prisão coletiva. As manchas de sangue foram pintadas com uma tinta chamada “progresso”, “democracia” e “crescimento econômico”. O capital e seus servidores conseguiram refletir as aspirações dos povos que exploravam, pelo menos por um tempo, acreditaram nisso.

Mas hoje, a festa acabou. A ilusão social mais poderosa da história moderna está se desintegrando, mesmo que alguns ainda acreditem poder se beneficiar de um sistema obsoleto, ou não queiram abrir mão do imperialismo cultural anglo-americano em favor da nostalgia instilada pela cultura popular. Vighi está bem posicionado para saber disso.

“Enquanto o sonho americano se transforma lentamente em pesadelo para a classe média, a única opção realista é apertar os parafusos. Isso é feito por meio de propaganda, censura, escalada de guerra, gestão de cenários catastróficos diários, limpeza étnica e violência política contra aqueles que não querem tomar partido.”

A ameaça do fim do mundo para a economia alavancada do Ocidente foi implantada como uma arma biológica ou geopolítica. A democracia liberal, última forma de governança para a humanidade, sempre tenta se concretizar “enquanto o futuro desmorona em um presente claustrofóbico preso na dinâmica violenta da dívida e na ameaça de catástrofes mundiais”.

Assim, a catástrofe econômica se transforma em um “discurso sobre o fim dos tempos sociais e geopolíticos”. Com a promoção constante e deliberada de teatros de guerra, como o conflito russo-ucraniano e o genocídio palestino, a “dimensão escatológica da economia libidinal da alavancagem” se dissolve no que Vighi chamou de “capitalismo de emergência”.

Para o professor da Universidade de Cardiff, é essencial lembrar que “a paralisia do futuro que nos liga a um presente deprimente (enquanto apaga os traços do passado) decorre da crise final do capital, melhor representada pela natureza insubstancial do dinheiro em nosso universo hiperfinanceiro”.

Tipicamente, as contradições internas do capital global são resolvidas por meio de um “inimigo externo”. “Foi o caso na ex-Iugoslávia, por exemplo, quando os sauditas secretamente financiaram uma operação de fornecimento de armas no valor de 300 milhões de dólares ao governo bósnio (a partir de 1993), com a cooperação tácita dos Estados Unidos e em violação do embargo de armas decretado pela ONU que Washington tinha se comprometido a respeitar”.

Isso abriu caminho para o bombardeio criminoso da Sérvia pela OTAN. Como resumiu o economista americano Jeffrey Sachs em uma entrevista recente, “em 1999, bombardeamos Belgrado [sem autorização da ONU] por 78 dias, com a intenção de quebrar a Sérvia e criar o novo estado do Kosovo, onde agora temos a maior base militar da OTAN (Bondsteel) no sudeste da Europa”.

“Mas agora que o projeto de globalização centrado na América está recuando, vemos a hostilidade cega se intensificar. O mestre da OTAN pede aos lacaios europeus que latam mais alto do que os cães de seus inimigos. E estes últimos, nos nós de um ciúme secular, disputam um quarto de hora de glória geopolítica à Warhol. Tal é, afinal, a missão atribuída aos subordinados: se sacrificar voluntariamente pelo imperador”, explica Vighi.

Mas o Ocidente complacente continua a evitar a introspecção qualificando seu adversário de mau. “Se a crise da civilização capitalista é realmente mundial e não existe um modelo libertador no tabuleiro geopolítico, é claro que o sentimento antirrusso atual decorre de um quadro ideológico bem estabelecido”.

Visto do Ocidente, os russos sempre foram uma raça inferior, parentes de sangue dos mongóis e bárbaros, que são, portanto, traidores e têm “traços asiáticos”. Não é surpreendente que esses sentimentos racistas sempre tenham sido uma arma importante no arsenal geopolítico do Ocidente.

“Se os russos foram tsaristas, socialistas ou uma nova geração de capitalistas, sempre foram retratados como tiranos subdesenvolvidos movidos por uma sede de poder que, de alguma forma, aterroriza os liberais ocidentais. Freud diria que projetamos em um inimigo depravado as seduções violentas cultivadas em nosso próprio jardim”, analisa Vighi.

“O essencial é que essa hostilidade de longa data em relação à Rússia, que serve como um depósito para as ansiedades ocidentais reprimidas, mascara o fato de que a forma mais avançada do capitalismo já passou do seu tempo. Para parafrasear as célebres palavras de Hegel, o Ocidente é “uma forma de vida obsoleta, que tenta desesperadamente acreditar que ainda é jovem e cheia de energia”.

Vighi concorda que a melhor maneira de entender as perspectivas geopolíticas contemporâneas é voltar ao livro de Zbigniew Brzezinski de 1997 intitulado “O Grande Tabuleiro de Xadrez”. Fica então claro que a “operação Ucrânia” há muito tempo era uma peça essencial na expansão da OTAN para o leste.

Brzezinski – conselheiro de segurança nacional de Jimmy Carter, cofundador da Comissão Trilateral com David Rockefeller, e eminência parda bem conhecida da política externa ocidental global desde a época de Lyndon Johnson até a administração de Barack Obama – explica claramente a importância da Ucrânia como ponto focal geopolítico para a manutenção da posição dos Estados Unidos no continente eurasiático.

O objetivo de curto prazo dos Estados Unidos era “impedir o surgimento de uma coalizão hostil que pudesse eventualmente buscar contestar a primazia dos Estados Unidos”. Tratava-se de garantir que “nenhum Estado ou combinação de Estados tivesse a capacidade de expulsar os Estados Unidos da Eurásia”. A adesão da Ucrânia à OTAN era um elemento essencial desse plano.

A Rússia foi submetida a condições inequívocas: ou aceitava a dominação mundial dos Estados Unidos (promovendo um “sistema político descentralizado baseado em mercados livres”, como fez Boris Yeltsin na década de 1990), ou se tornava “um pária da Eurásia” e “perdia toda a relevância na Ásia”. Putin não aceitaria tais ultimatos.

A doutrina geopolítica de Brzezinski foi revigorada pelas manobras de Washington visando forçar a Rússia a atacar a Ucrânia em 2022, o que também serviu como pretexto para incitar os aliados europeus dos EUA a romperem suas relações com a Rússia. A aliança militar ocidental também conseguiu expandir sua presença na Finlândia e na Suécia.

O objetivo dos Estados Unidos é expandir sua hegemonia. A tomada de riscos geopolíticos visa proteger “os dois últimos bastiões frágeis do imperialismo ocidental”, o dólar americano como moeda de reserva mundial e o complexo industrial-militar, que são “essenciais para o apoio a uma bolha do mercado de ações voltada para a tecnologia e carregada de dívidas, cuja inflação condiciona o destino do império”.

Como Vighi explicou várias vezes, “o capitalismo financeiro tenta gerenciar sua própria queda semeando mais destruição até a promessa escatológica do fim do mundo”. Os políticos e as elites nem mesmo se escondem mais atrás do verniz liberal de sua democracia evaporada, mas seguem o mesmo roteiro distópico.

Jens Stoltenberg, figura de destaque da OTAN, chama para um confronto direto com a Rússia. Larry Fink, diretor da empresa de gestão de ativos BlackRock, defende a despovoação como incentivo à competitividade: “Os problemas sociais decorrentes da substituição de pessoas por máquinas são muito mais fáceis de gerenciar em países onde a população está em declínio”, afirma friamente.

“A aliança do capital com as tecnologias da terceira e quarta revoluções industriais é inevitavelmente antisocial e intrinsecamente eugênica. Não há mais nada a fazer nesse front: ou encontramos uma saída comum, ou só podemos acelerar em direção ao abismo”, exorta Vighi, sem poder propor uma solução.

“O essencial é que essa hostilidade de longa data em relação à Rússia, que serve como um depósito para as ansiedades ocidentais reprimidas, mascara o fato de que a forma mais avançada do capitalismo já passou do seu tempo. Para parafrasear as célebres palavras de Hegel, o Ocidente é “uma forma de vida obsoleta, que tenta desesperadamente acreditar que ainda é jovem e cheia de energia”.

Vighi concorda que a melhor maneira de entender as perspectivas geopolíticas contemporâneas é voltar ao livro de Zbigniew Brzezinski de 1997 intitulado “O Grande Tabuleiro de Xadrez”. Fica então claro que a “operação Ucrânia” há muito tempo era uma peça essencial na expansão da OTAN para o leste.

Brzezinski – conselheiro de segurança nacional de Jimmy Carter, cofundador da Comissão Trilateral com David Rockefeller, e eminência parda bem conhecida da política externa ocidental global desde a época de Lyndon Johnson até a administração de Barack Obama – explica claramente a importância da Ucrânia como ponto focal geopolítico para a manutenção da posição dos Estados Unidos no continente eurasiático.

O objetivo de curto prazo dos Estados Unidos era “impedir o surgimento de uma coalizão hostil que pudesse eventualmente buscar contestar a primazia dos Estados Unidos”. Tratava-se de garantir que “nenhum Estado ou combinação de Estados tivesse a capacidade de expulsar os Estados Unidos da Eurásia”. A adesão da Ucrânia à OTAN era um elemento essencial desse plano.

A Rússia foi submetida a condições inequívocas: ou aceitava a dominação mundial dos Estados Unidos (promovendo um “sistema político descentralizado baseado em mercados livres”, como fez Boris Yeltsin na década de 1990), ou se tornava “um pária da Eurásia” e “perdia toda a relevância na Ásia”. Putin não aceitaria tais ultimatos.

A doutrina geopolítica de Brzezinski foi revigorada pelas manobras de Washington visando forçar a Rússia a atacar a Ucrânia em 2022, o que também serviu como pretexto para incitar os aliados europeus dos EUA a romperem suas relações com a Rússia. A aliança militar ocidental também conseguiu expandir sua presença na Finlândia e na Suécia.

O objetivo dos Estados Unidos é expandir sua hegemonia. A tomada de riscos geopolíticos visa proteger “os dois últimos bastiões frágeis do imperialismo ocidental”, o dólar americano como moeda de reserva mundial e o complexo industrial-militar, que são “essenciais para o apoio a uma bolha do mercado de ações voltada para a tecnologia e carregada de dívidas, cuja inflação condiciona o destino do império”.

Como Vighi explicou várias vezes, “o capitalismo financeiro tenta gerenciar sua própria queda semeando mais destruição até a promessa escatológica do fim do mundo”. Os políticos e as elites nem mesmo se escondem mais atrás do verniz liberal de sua democracia evaporada, mas seguem o mesmo roteiro distópico.

Jens Stoltenberg, figura de destaque da OTAN, chama para um confronto direto com a Rússia. Larry Fink, diretor da empresa de gestão de ativos BlackRock, defende a despovoação como incentivo à competitividade: “Os problemas sociais decorrentes da substituição de pessoas por máquinas são muito mais fáceis de gerenciar em países onde a população está em declínio”, afirma friamente.

“A aliança do capital com as tecnologias da terceira e quarta revoluções industriais é inevitavelmente antisocial e intrinsecamente eugênica. Não há mais nada a fazer nesse front: ou encontramos uma saída comum, ou só podemos acelerar em direção ao abismo”, exorta Vighi, sem poder propor uma solução.

“Chegamos a um estágio onde o capital consome tudo, inclusive a si mesmo, para manter a ilusão de sua própria imortalidade. A negatividade de uma constelação social é projetada sobre a outra, maligna, a fim de imunizar o sistema contra suas próprias contradições mortais”.

Mas os relatos maniqueístas da mídia e a perpetuação da imagem do inimigo ainda são um meio eficaz de fortalecer a fé das pessoas em um sistema em decomposição? Quanto tempo a psicose da guerra instilada no público pode durar? E até que ponto se pode impedir que a ameaça de uma catástrofe se torne realidade?

“O capitalismo de emergência e sua dependência da figura do inimigo servem para adiar o momento da prestação de contas. Como vimos em 2020, o psico-pandemismo foi usado para imprimir trilhões de dólares, que foram então injetados no setor especulativo em dificuldades para atrasar o colapso financeiro por meio de uma campanha de medo global”, repete o conspiracionista Vighi.

Essa “gestão de crise” perversa cria situações difíceis de lidar. As apostas econômicas levaram a um impasse em termos de política externa e de segurança: a OTAN ocidental é uma ameaça existencial para a Rússia e vice-versa. A “ameaça dos relatos escatológicos” vai se tornar incontrolável?

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