A Geopolítica da África: O Sahel como Heartland Africano

04.08.2023
Muitas páginas e contas que até então não haviam escrito nada sobre o Sahel ou comentado sobre os processos políticos africanos recentes estão pulando na “onda” em relação ao tema.

O resultado são explicações muito fracas que ignoram a geopolítica do Sahel, o lugar da África nos conflitos internacionais recentes e focam apenas em uma ou outra questão econômica (limitação derivada da origem marxista dessas análises repentinas, mas pelo menos não são como outras análises marxistas que chamam as revoltas africanas do século XX e XXI de “nacionalistas burguesas”).

Sahel, o Heartland africano.

Para sanar isso recomendo uma análise feita ontem pelo Lucas Leiroz contextualizando o fenômeno geral à luz da promoção de caos pelo Ocidente através da instrumentalização do terrorismo, bem como do enfrentamento russo a essa ameaça através do Wagner.

Eu vou acrescentar umas reflexões.

A África é parte da Ilha Mundial, segundo a geopolítica de Mackinder, ou seja, da supermassa terrestre abarcando Europa, Ásia e África, com esta última correspondendo ao flanco sul do supercontinente. Considerando o brocado de Mackinder sobre o Heartland, uma visão importante da geopolítica atlantista é impedir o seu acesso aos recursos africanos.

Inicialmente, isso seria feito não na África, mas na própria Europa Oriental pela fragmentação das fronteiras da área-pivô. Mas na medida em que o controle soviético no Heartland não demonstrava fragilidade, a talassocracia deveria subjugar a telurocracia através do Rimland, nos termos de Spykman, ou seja, de toda a faixa territorial costeira envolvendo Europa, Norte da África, Oriente Médio, Índia, Sudeste Asiático, subindo pela costa sino-coreana, a partir do Mar.

Assim, mesmo com o Heartland consolidado, o controle do Rimland por uma potência hostil como os EUA, seria suficiente para sufocar o Estado em questão. É importante ter isso em mente porque essa é a lógica geopolítica fundamental tanto da presença ianque na Europa (a Grã-Bretanha como aeródromo), como da Guerra do Vietnã e da Primavera Árabe.

O Saara aí aparece no Mackinder tardio como compondo parte de um “Cinturão de Desertos” cujo controle permite estabelecer uma forma de “barreira natural”. Para o atlantismo, representa uma zona cujo controle facilita o controle da Rimland. Para a Rússia, representa uma zona através da qual é possível reduzir a pressão sobre a Rimland.

Nos Fundamentos da Geopolítica de Dugin, no caso, os países do Saara aparecem no contexto da defesa da Eurásia como fronteira meridional no caso de uma aliança entre a Rússia e as forças árabe-islâmicas.

Agora, toda a região da região conflituosa em questão, que vai do Sahel ao delta do Rio Congo pelo oeste da África, é caracterizado como “Shatterbelt” por Saul Cohen, ou seja, como uma zona caótica de fragmentação, difícil de estabilizar e em que as potências possuem dificuldade de aplicar qualquer linha de ação por causa da conflituosidade étnica, religiosa, etc., o que na prática é resultado também dos projetos neocolonialistas franceses desde Vidal de la Blache, que visava impor fronteiras à África segundo os critérios europeus.

Não obstante, a concretização de uma aliança Mali-Guiné-Burkina-Níger, com suporte argelino e ainda uma ramificação que vai da RCA à RDC, com apoio russo, pode retirar essa região da categoria de “Shatterbelt” passando a se tornar uma região estratégica tanto para a defesa da Eurásia pelo controle do Saara como para o próprio controle do Heartland africano, identificado pelo Mackinder tardio como correspondendo a toda a zona africana abaixo do deserto.

Importante, também, que apesar dos rios Níger e Congo, por exemplo, serem extensos, sua navegabilidade é limitada pelas várias quedas d’água, o que dificulta esforços atlantistas de controlarem a região a partir do mar.

Em suma: a Rússia se projeta no Sahel em uma movimentação que atende aos interesses russos e, simultaneamente, aos africanos. Aos interesses russos porque permite defender o flanco sul da Eurásia (e aí se encaixa aqui o artigo do Lucas Leiroz sobre a promoção de terrorismo no Sahel pelo Ocidente como ameaçando a Rússia) e responder à disputa no Rimland; aos interesses africanos porque a estabilização da região em disputa (correspondente mais ou menos à Françáfrica) torna possível para os Estados regionais integrados controlem o Heartland africano (em aliança com a Rússia).

Entra aí outro possível elemento, que é o controle do Sahel e a desconstrução da Françáfrica como mecanismos para acelerar o colapso da OTAN, fazendo a talassocracia perder seu posto avançado ocidental por uma pressão meridional somado ao próprio inconformismo europeu.

Temas como urânio, ouro, petróleo, etc., são relevantes, mas entram mais na ordem dos “prêmios” do que da essência da geopolítica.

Fonte: novaresistencia.org