Alain de Benoist entrevista Aleksandr Dugin: “Quem é Vladimir Putin?”

08.02.2022

Putin permanece sendo um mistério para os não russos, especialmente para os do hemisfério ocidental. Pouco se sabe sobre como ele realmente pensa, por que age da maneira como age, o que pretende fazer, etc. Ninguém melhor do que o filósofo Aleksandr Dugin para ajudar a explicar, para os não russos, quem é Vladimir Putin.

Um intelectual, poliglota, filósofo e geopolítico, Aleksandr Dugin é atualmente o principal teórico do eurasianismo, uma doutrina geopolítica que está se tornando cada vez mais influente no cenário político russo. Ninguém melhor que ele para pintar um retrato do inquilino do Kremlin.

Aos olhos de muitos, Vladimir Putin é um enigma. Demonizado por alguns como um “novo czar” ou um eterno “agente da KGB”, adulado por outros como o restaurador da “Rússia tradicional”, ele se tornou, particularmente desde suas últimas reeleições, o “Grande Satã” dos americanos e suas extensões ocidentais. A atual histeria antirrussa nos Estados Unidos deixa claro que, mesmo na época da Guerra Fria, o antissovietismo servia de tela para um antagonismo político muito mais fundamental. Quais são as causas profundas desta atitude?
Os acontecimentos ocorridos desde os anos 80 nos ensinaram uma grande lição sobre a importância crucial da geopolítica. À luz da geopolítica, a história de um século atormentada por conflitos ideológicos encontra sua explicação. Também nos fornece os meios para entender o que está acontecendo ao nosso redor. A Guerra Fria não pode ser resumida como um simples confronto entre o “mundo livre” e o mundo soviético. É também, ainda mais, um novo episódio de um conflito muito mais fundamental entre o poder do mar, a talassocracia anglo-saxônica, e o poder da terra, a telurocracia eurasiática. Após a queda da URSS, a primeira parece ter prevalecido. Seu triunfo corresponde ao objetivo final do “progresso”, tal como concebido pelas elites globalistas.

Nesta perspectiva, a Rússia, como uma grande potência telúrica, era vista como pertencente ao passado. Era possível acreditar nisso na época de Boris Iéltsin, quando se viu uma espécie de “dilúvio marítimo” descendo sobre o mundo da terra. Absorvida pelas reformas liberais, a Rússia não existia mais como um império e começou a se desintegrar com as guerras na Chechênia e no Norte do Cáucaso. Foi então que uma figura emblemática, Vladimir Putin, apareceu em Moscou e mudou completamente o curso dos acontecimentos. Putin começou restaurando a potência eurasiático, ou seja, o polo telúrico, reforçando, de um golpe, a integridade e a soberania da Rússia. Ele não o fez sob a influência dos movimentos eurasianistas, mas, inesperadamente, por sua própria iniciativa. Na medida em que ele se opôs ao mundo unipolar desejado pela mídia atlantista, ele apareceu como uma ameaça e um obstáculo aos projetos globalistas que também são os mesmos do sistema capitalista. Que ele deva ser designado como o “Grande Satã” é, portanto, lógico. Para aqueles que estão do lado do mar contra a terra, ele representa o mal: ele é um demônio. Para aqueles que se opõem à talassocracia e aspiram a um mundo multipolar, ele é, ao contrário, o salvador da potência continental, da Rússia soberana e de uma Europa independente.

A direita nacional, a direita francesa em particular, frequentemente expressa grande simpatia por Putin – com exceção daqueles círculos que lhe são hostis por solidariedade aos nacionalistas ucranianos – mas esta direita não conhece praticamente nada da complexidade da cena política russa. A Putin é frequentemente atribuído um “discurso ultraconservador” (defesa da família tradicional e da identidade cultural do povo russo, crítica ao materialismo e ao racionalismo), mas esta opinião também pode ser o resultado de uma visão apressada da realidade russa baseada em modelos ocidentais tradicionais. O que você acha disto?
É preciso levar em conta o que em sociologia é chamado de fato social. É o fato social que cria a sociedade. Se a direita europeia, que está próxima de certos círculos radicais, pensa que Putin é um conservador e um tradicionalista, isto significa que ele é um conservador e um tradicionalista para eles. Mas eu não acho que Putin seja um ideólogo. Ele é um homem que se adapta às circunstâncias. Tudo o que se pode dizer é que do momento em que ele defende a Rússia como uma entidade independente e soberana, ele automaticamente se baseia em valores que contradizem os da mídia globalista (individualismo, teoria de gênero, desconstrução dos Estados, destruição da família, imigração em massa, etc.).

A oposição liberal a Putin é bem conhecida, mas não é a única. Existe a oposição representada pelo partido comunista de Zyuganov. E quanto aos jovens escritores iliberais como Zakhar Prilepin ou Sergei Chargunov, ativos nos grupos “A Outra Rússia” ou “Estratégia 31”, que não hesitam em se definir como nacional-bolcheviques ou conservadores revolucionários, apelando para uma nova forma de “socialismo russo”. O que você pensa?
Que você tem razão. Vladimir Putin não está sozinho na incorporação de uma mistura de iliberalismo e conservadorismo orgânico na Rússia. A diferença é que ele é um czar, enquanto os outros não representam nada. Seu poder não é um poder totalitário exercido de cima, mas uma espécie de poder autoritário monárquico que responde a uma demanda vinda de baixo. Putin responde a esta demanda, que ele não criou nem impôs. Eu conheço muito bem as ideias de Zyuganov porque o ajudei a elaborar a doutrina de um partido comunista renovado. Mas, francamente, eu não acho que isto seja importante. Zyuganov não é de interesse para quase ninguém. Seu partido é um aparelho burocrático que não tem influência sobre as ideias atuais na Rússia. O que conta agora é o que se passa no coração e na cabeça de Putin.

Os jovens nacional-bolcheviques de hoje, ao contrário daqueles dos anos 90, que eram fundamentalmente idealistas, são principalmente oportunistas que seguiram Limonov em seu período liberal. Limonov manteve o rótulo de nacional-bolchevique que eu propus, mas nunca se identificou realmente com ele. Ele é um personagem inclassificável, muito individualista, preocupado sobretudo em afirmar seu ego em relação ao resto do mundo. Existe ele de um lado e o resto do mundo, do outro. Por ser enérgico e talentoso, ele pode dar a seu combate individualista um perfil anticonformista, combinando todas as ideologias radicais da direita e da esquerda, mas isso não o impede, sempre por causa de seu anticonformismo, de liderar os liberais contra Putin. Suas motivações não são ideológicas, mas artísticas e literárias.

De minha parte, acho Chargunov e seus amigos menos talentosos que Limonov. Eles procuram, imitando-o, integrar-se ao establishment cultural e político, mas lhes falta profundidade e radicalismo. O inconformismo é, para eles, uma maneira de se promoverem, o que explica porque seguiram sucessivamente os liberais e, depois, os nacionalistas da Novorrússia.

A Federação Russa é hoje o maior país do mundo. Não é um Estado-nação, mas um Estado multicultural com mais de cem “nacionalidades” e mais de 20 milhões de muçulmanos. “A Rússia, como país eurasiático, é um exemplo único onde o diálogo de culturas e civilizações se tornou praticamente uma tradição na vida do Estado e da sociedade”, disse Putin em 2003. Esta descrição corresponde à realidade?
Corresponde a um fato, precisamente porque a Rússia não é um Estado-nação. Hoje é o remanescente de um império, uma espécie de “império abreviado”, mas que está sempre no coração do império. O império, no sentido pleno do termo, corresponderia às fronteiras da antiga Rússia imperial. A federação atual manteve as características multiétnicas de qualquer construção imperial tradicional, tais como minorias religiosas significativas, a começar pelos muçulmanos, mas também há várias outras. É também a razão pela qual combina um forte centralismo estratégico com uma organização político-administrativa regional altamente flexível. Tudo isso não se deve em nada a Putin, sendo explicado pela realidade histórica e sociológica. Dentro de suas fronteiras atuais, a Rússia ainda é muito pequena para ser um verdadeiro império.

Após os eventos terroristas de Beslan, Putin aboliu a eleição por sufrágio universal dos governadores de sete grandes regiões administrativas (ou distritos federais) criados em 2000. Devemos ver nisto um fortalecimento do poder central em detrimento do “localismo” proposto no passado pelos círculos eslavófilos?
Este não é o caso. Tratava-se apenas de corrigir certas disposições constitucionais da Federação Russa que haviam sido adotadas sob a influência dos liberais na época de Boris Iéltsin, disposições que introduziram o princípio da soberania nacional das repúblicas que constituíam a federação, com o risco de transformá-la gradualmente em uma simples confederação de Estados-nações independentes. Na época da guerra da Chechênia, a rebelião chechena poderia, em caso de vitória, usar essas mesmas disposições para exigir independência total, o que teria anunciado o fim da federação. Desde que chegou ao poder, Putin tem procurado evitar este risco de desintegração. Mas é importante ver claramente que esta manobra não vai contra o princípio de subsidiariedade, na medida em que não põe em questão as delegações de poder às autoridades regionais e municipais, pois são níveis diferentes. O federalismo não pode funcionar corretamente se a unidade estratégica do país for impugnada.

Diz-se que Putin é um desses raros chefes de Estado com uma sólida cultura intelectual. Ele já comentou sobre Leibniz, cuja influência na Rússia foi muito grande a partir de meados do século XIX, mas também sobre Soloviev, Leontiev e Berdyaev, e até mesmo Solzhenitsyn. Ele também citou em alguns de seus discursos Ivan Ilyin (1883-1954), aquele filósofo hegeliano conservador que foi exilado por Lênin em 1922. A acreditar em alguns comentaristas, Ivan Ilyin teria se tornado o pensador oficial do “putinismo”?
Isto é totalmente exagerado. Putin é um patriota pragmático; ele não é de forma alguma um intelectual e eu até acho que sua cultura é fragmentária. As pessoas ao seu redor sem dúvida sugerem que ele leia este ou aquele autor. Será que ele o faz? Eu não sei. Só consigo pensar que ele tem uma simpatia natural por certas ideias conservadoras. Quanto a Ilyin, apresentá-lo como uma espécie de “pensador oficial” não faz sentido. Ele era, por outro lado, um pensador bastante medíocre, um conservador sem dúvida, mas desinteressante, superficial, eclético. Seu monarquismo e anticomunismo puderam garantir simpatia, na época da guerra civil russa, entre os emigrados “russos brancos”, mas seus escritos não têm nenhum encanto. Talvez seria possível aproximá-lo do conservadorismo europeu dos anos 1920, até mesmo do fascismo italiano, mas sem a dimensão cultural e artística do vanguardismo da época. Não creio que ele seja amplamente lido entre a elite hoje em dia.

O patriotismo é aparentemente um valor crescente na Rússia. Mas o atual patriotismo russo, em grande parte baseado na vitória de 1945 sobre o nacional-socialismo, não é exatamente o mesmo que o pregado pela corrente eslavófila: sua particularidade é que exalta tanto a época czarista quanto a stalinista, como testemunha a famosa Carta ao Camarada Stalin publicada em julho de 2012 por Zakhar Prilepin. Este patriotismo é uma forma de lealdade à ideia da Rússia, da União Soviética, ou de ambos?
Eu diria que é mais uma reação orgânica dirigida contra o liberalismo, os Estados Unidos e a civilização pós-moderna ocidental. Os russos estão orgulhosos da grandeza de seu país, seja sob os czares ou sob os soviéticos. Não existe uma ideologia nacional-bolchevique no país, mas uma reação eclética que apela para períodos diferentes, mesmo opostos, de nossa história, sem estabelecer uma hierarquia particular entre eles. Este patriotismo tem pelo menos a vantagem de criar condições propícias à difusão, entre as gerações mais jovens, de correntes de pensamento mais coerentes e melhor estruturadas.

Na frente econômica, a Rússia está gradualmente superando a política catastrófica elaborada por Igor Gaidar na era de Boris Iéltsin. Mas parece haver duas tendências opostas no Kremlin sobre questões econômicas. Contra a tendência liberal representada pelo ex-ministro das finanças Alexei Koudrin, Putin parece agora apostar no grupo Stolypin representado por Sergei Glazyev e Boris Titov, mais próximo das ideias de Friedrich List do que das de Adam Smith. Esta aposta anuncia uma reorientação da economia russa?
As coisas são mais complexas. Em um nível estritamente econômico, Putin não é um adversário do liberalismo. Os principais ministros do governo Medvedev eram, além disso, liberais convictos. Em economia, Putin é liberal no sentido mercantil do termo. Poder-se-ia até defini-lo como um liberal-mercantilista. Isto significa que ele não procura questionar a economia de mercado, mas quer que o Estado mantenha o controle sobre as transações comerciais internacionais. Ele também quer que os recursos naturais permaneçam sob o controle do Estado ou sob o controle de seu clã.

Como você julga a reação de Putin à crise ucraniana? Você acha que as tensões no leste da Ucrânia estão fadadas a se intensificar? Numa época em que a OTAN está preparada para uma hipotética guerra para “proteger” os “Estados bálticos”, você acredita em uma escalada da guerra? Até onde pode ir essa tensão?
Na Ucrânia, os Estados Unidos jogaram um jogo perigoso. Quando tiveram a oportunidade de fazer isso no passado, sempre deram a impressão de que estavam prontos para lançar uma nova “guerra quente”. Então a tensão cai e os americanos concordam com os russos para não se envolverem em uma escalada extrema. Mas, é claro, nada está decidido. As eleições presidenciais americanas também desempenharam um papel importante.

As sanções adotadas pelos europeus após a reintegração da Crimea na Rússia provavelmente convenceram finalmente Putin de que uma Europa verdadeiramente independente não está às portas. Como resultado, ele se aproximou da China e deu cada vez mais importância à Organização de Cooperação para Xangai fundada em 2001. Basta dizer que Putin está agora se posicionando em uma perspectiva mais “eurasiática” ou é apenas realismo político?
Putin é um Chefe de Estado realista. Ele também está intelectualmente mais próximo dos europeus do que dos chineses, que pertencem a uma civilização completamente diferente. Putin gostaria de ter se tornado aliado de uma Europa independente no contexto de um mundo multipolar, mas a Europa está de fato completamente comprometida com o atlantismo, colonizada pelos americanos. A Europa não é livre, pois nem mesmo é livre para apoiar Putin como um aliado. Você não pode ter relações estratégicas com alguém que não é livre. Enquanto a Europa permanecer sob o controle dos EUA, ela se tornará cada vez mais a cabeça-de-ponte da estratégia americana no continente eurasiático, e os desejos de amizade de Putin não serão possíveis. Se a Europa se tornar soberana novamente, tudo será diferente. É o mesmo com Israel. Realisticamente, Putin não tem outra escolha senão procurar aliados fora da Europa, na China, por exemplo. Não acho que ele esteja feliz em fazê-lo, mas não pode fazer o contrário porque a Europa política ainda não existe.

No Oriente Médio, Putin tem jogado um jogo muito inteligente na questão síria. Mas enquanto consolida o eixo Moscou-Damasco-Teerã, ele também tem se esforçado para manter boas relações com Israel e mesmo, espetacularmente, com a Turquia. O que você acha disto?
Israel e Turquia são dois casos diferentes. Em princípio, Israel não é uma potência regional, mas apenas um instrumento da política dos EUA no Oriente Médio. Putin nunca será dependente de Israel, pela simples razão de que os israelenses são dependentes dos Estados Unidos. Os israelenses não são mais livres do que os europeus. Putin não tem nada contra eles, mas também não sente nenhuma obrigação para com eles porque eles não representam nenhum poder autônomo na arquitetura estratégica da região. Para assuntos sérios, ele se volta diretamente para Washington.

A Turquia, por outro lado, é uma potência regional, e uma potência tradicionalmente ciumenta de sua soberania nacional. É para garantir sua soberania que optou estrategicamente pela OTAN diante da ameaça representada por Stálin. Hoje, os intelectuais e aqueles mais próximos de Erdogan, especialmente após a tentativa de golpe, acreditam que o principal desafio estratégico para a Turquia não é a Rússia, mas os Estados Unidos. Esta é também a opinião dos kemalistas, que inicialmente se opuseram a Erdogan até que acabaram concordando com ele. Isto tornou possível evitar uma guerra entre a Rússia e a Turquia, e também favoreceu a aproximação com Teerã e Damasco, o que não é exatamente o que os Estados Unidos queriam. Penso que a Rússia vai reorganizar a arquitetura estratégica da Eurásia, criando múltiplos elos.

Fonte: El Manifiesto